domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | ‘Nomadland’, de Chloé Zhao, desconstrói o “sonho americano” da maneira mais poética possível

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No final dos anos 2000, o mundo capitalista passava por mais uma derradeira crise que se tornou a pior desde a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929. Recomeçando praticamente do zero, os Estados Unidos, novamente epicentro de uma bolha imobiliária que explodiu e que trouxe enorme prejuízo aos bancos e à vida trabalhista do país, perceberam um aumento exponencial de desempregados e indigentes que perderam suas casas e tiveram que procurar um meio alternativo de sobreviverem – e essa é, em suma, a premissa que guia o aclamado drama tour-de-force Nomadland, de Chloé Zhao.

Desde sua estreia no Festival Internacional de Toronto até o lançamento oficial nos cinemas de todo o mundo, o longa-metragem recebeu atenção enorme por inúmeros motivos, mas principalmente pela presença espetacular de Frances McDormand no papel protagonista de Fern, uma mulher que perdeu o marido e o emprego e que se tornou uma nômade ao lado de tantos outros estadunidenses – cruzando o país em uma van e arranjando bicos em diversas empresas e restaurantes no Meio Oeste. Zhao, não apenas escrevendo a adaptação do romance de não-ficção homônimo de Jessica Bruder, mas também comandando-a e montando cada uma das complexas peças dessa viagem, ascendeu ao patamar de uma das grandes realizadoras da contemporaneidade, ganhando atenção no cenário mainstream anos depois de sua estreia cinematográfica em 2015.



A narrativa, como já mencionada, é centrada em Fern. Caminhando para o auge da terceira idade, a construção da personagem pode não ser um dos mais explosivos já vistos no cinema, mas nos cativa pela humildade e pelas transições emocionais pelas quais passa ao longo de pouco mais de uma hora de tela. McDormand, caminhando para sua terceira estatueta do Oscar após ‘Fargo’ e ‘Três Anúncios para um Crime’, dá vida ao retrato mais pungente e ao mesmo tempo singelo da desconstrução mandatória do “sonho americano”, trazendo crítica à ideologia predatória que beneficia as elites e coloca a classe trabalhadora sobre um caminho de ovos, nunca certos do que o futuro lhes aguarda. Mas Fern parece “bem” com a situação e parece ter se encontrado com inúmeros outros nômades que se tornam seus confidentes e amigos de uma longa data que nunca, de fato, existiu.

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Comedida e respeitosa, a nossa “heroína” trata todos bem e sabe que pode aprender com aqueles que estão na estrada há mais tempo. Mesmo assim, ela se restringe à própria presença e tenta não construir laços afetivos duradouros, seja com a conhecida Swankie (Charlene Swankie) ou com o charmoso Dave (David Strathaim). É por esse motivo também que seu isolamento e seus pontos de reflexão, que a levam a relembrar do marido falecido e de sua vida como uma serva urbana com nostalgia pecaminosa – o que pode não parecer comovente para o público que espera um melodrama novelesco qualquer.

Assim como ‘Songs My Brother Taught Me’, de 2015, Zhao emprega com audácia uma paleta de cores que não varia muito e que se exila na melancolia do azul e num esparso brilho amarelado que é tão convidativo quanto efêmero. Cada uma das centenas de sequências externas assemelha-se à estética documentária que a diretora imprimiu em produções anteriores, deixando de lado os caprichos cênicos do campo-contracampo (com raras exceções) e abrindo espaço para uma manufaturada fluidez em planos contínuos e intimistas – mostrando que a vastidão do mundo é, na verdade, um ciclo vicioso que sai de lugar nenhum e chega a nenhum lugar. A cereja do bolo vem com as contradições artísticas arquitetadas pela realizadora: ao mesmo tempo que Fern é solitária, sabe em quem confiar; a serenidade da vida em contato com a natureza é um lembrete de escolhas e situações que fugiram do controle e que trazem consequências marcantes para a vida de qualquer um.

Dividir o filme em atos concisos é um trabalho difícil e desnecessário, visto que Zhao tem muito mais aptidão às não-narrativas. Trabalhando, essencialmente, no período de um ano, o arco de Fern começa nas celebrações do Natal e do Ano Novo e termina do mesmo jeito – com o diferencial de que a rendição de McDormand carrega mais cicatrizes e mais memórias que não irão mais voltar. E, no final das contas, revisitando o que outrora lhe pertencia num passado distante, ela é confrontada com turbilhões de emoções que a fazem questionar como trilha esse caminho diferente do normatizado pela sociedade – e que é passível de uma arbitrária e condescendente empatia.

É impressionante como nenhum dos aspectos do longa falha em entregar exatamente aquilo que promete: a dicotomia entre a aurora e o ocaso é transferida inclusive à minimalista trilha sonora de Ludovico Einaudi e a uma sóbria e trágica fotografia de Joshua James Richards. Mesmo assim, com todas essas infusões que vão para além de um mero estudo de caso, é bem provável que Nomadland não caia no gosto de todos – mas que merece ser visualizado como a densa análise antropológica e sociológica que realmente é.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Desde sua estreia no Festival Internacional de Toronto até o lançamento oficial nos cinemas de todo o mundo, o longa-metragem recebeu atenção enorme por inúmeros motivos, mas principalmente pela presença espetacular de Frances McDormand no papel protagonista de Fern, uma mulher que perdeu o marido e o emprego e que se tornou uma nômade ao lado de tantos outros estadunidenses – cruzando o país em uma van e arranjando bicos em diversas empresas e restaurantes no Meio Oeste. Zhao, não apenas escrevendo a adaptação do romance de não-ficção homônimo de Jessica Bruder, mas também comandando-a e montando cada uma das complexas peças dessa viagem, ascendeu ao patamar de uma das grandes realizadoras da contemporaneidade, ganhando atenção no cenário mainstream anos depois de sua estreia cinematográfica em 2015.

A narrativa, como já mencionada, é centrada em Fern. Caminhando para o auge da terceira idade, a construção da personagem pode não ser um dos mais explosivos já vistos no cinema, mas nos cativa pela humildade e pelas transições emocionais pelas quais passa ao longo de pouco mais de uma hora de tela. McDormand, caminhando para sua terceira estatueta do Oscar após ‘Fargo’ e ‘Três Anúncios para um Crime’, dá vida ao retrato mais pungente e ao mesmo tempo singelo da desconstrução mandatória do “sonho americano”, trazendo crítica à ideologia predatória que beneficia as elites e coloca a classe trabalhadora sobre um caminho de ovos, nunca certos do que o futuro lhes aguarda. Mas Fern parece “bem” com a situação e parece ter se encontrado com inúmeros outros nômades que se tornam seus confidentes e amigos de uma longa data que nunca, de fato, existiu.

Comedida e respeitosa, a nossa “heroína” trata todos bem e sabe que pode aprender com aqueles que estão na estrada há mais tempo. Mesmo assim, ela se restringe à própria presença e tenta não construir laços afetivos duradouros, seja com a conhecida Swankie (Charlene Swankie) ou com o charmoso Dave (David Strathaim). É por esse motivo também que seu isolamento e seus pontos de reflexão, que a levam a relembrar do marido falecido e de sua vida como uma serva urbana com nostalgia pecaminosa – o que pode não parecer comovente para o público que espera um melodrama novelesco qualquer.

Assim como ‘Songs My Brother Taught Me’, de 2015, Zhao emprega com audácia uma paleta de cores que não varia muito e que se exila na melancolia do azul e num esparso brilho amarelado que é tão convidativo quanto efêmero. Cada uma das centenas de sequências externas assemelha-se à estética documentária que a diretora imprimiu em produções anteriores, deixando de lado os caprichos cênicos do campo-contracampo (com raras exceções) e abrindo espaço para uma manufaturada fluidez em planos contínuos e intimistas – mostrando que a vastidão do mundo é, na verdade, um ciclo vicioso que sai de lugar nenhum e chega a nenhum lugar. A cereja do bolo vem com as contradições artísticas arquitetadas pela realizadora: ao mesmo tempo que Fern é solitária, sabe em quem confiar; a serenidade da vida em contato com a natureza é um lembrete de escolhas e situações que fugiram do controle e que trazem consequências marcantes para a vida de qualquer um.

Dividir o filme em atos concisos é um trabalho difícil e desnecessário, visto que Zhao tem muito mais aptidão às não-narrativas. Trabalhando, essencialmente, no período de um ano, o arco de Fern começa nas celebrações do Natal e do Ano Novo e termina do mesmo jeito – com o diferencial de que a rendição de McDormand carrega mais cicatrizes e mais memórias que não irão mais voltar. E, no final das contas, revisitando o que outrora lhe pertencia num passado distante, ela é confrontada com turbilhões de emoções que a fazem questionar como trilha esse caminho diferente do normatizado pela sociedade – e que é passível de uma arbitrária e condescendente empatia.

É impressionante como nenhum dos aspectos do longa falha em entregar exatamente aquilo que promete: a dicotomia entre a aurora e o ocaso é transferida inclusive à minimalista trilha sonora de Ludovico Einaudi e a uma sóbria e trágica fotografia de Joshua James Richards. Mesmo assim, com todas essas infusões que vão para além de um mero estudo de caso, é bem provável que Nomadland não caia no gosto de todos – mas que merece ser visualizado como a densa análise antropológica e sociológica que realmente é.

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