Spielberg volta a ser criança
Digam o que quiserem, Steven Spielberg é um ícone do cinema mundial. O cineasta possui crédito suficiente para passar o resto da carreira entregando filmes razoáveis e o que muitos dirão é que ele vem fazendo justamente isso. Você lembra qual foi o último grande filme unânime de Spielberg? Seus últimos quatro filmes (a animação As Aventuras de Tintim, a aventura Cavalo de Guerra, e os políticos Lincoln e Ponte dos Espiões) ranquearam em diferentes níveis na aprovação do grande público e especialistas – muitos sequer atribuem tais filmes ao diretor.
Neste fim de semana chega aos cinemas O Bom Gigante Amigo, nova empreitada de Steven Spielberg, deixando um pouco de lado obras sisudas e tentando embarcar novamente no seu lado criança. No entanto, na véspera de completar 70 anos de idade, Spielberg talvez tenha finalmente crescido.
O Bom Gigante Amigo (no original apenas a sigla BFG – Big Friendly Giant) é a primeira adaptação para as telonas (uma animação foi produzida para a TV em 1989) do livro infantil homônimo do autor Roald Dahl, igualmente um ícone dentro de seu segmento, tendo cedido material para produções como A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971 e 2005), Convenção das Bruxas (1990), James e o Pêssego Gigante (1996), Matilda (1996) e o Fantástico Sr. Raposo (2009).
Na trama, a pequena Sophie (Ruby Barnhill) é criada num orfanato em Londres, quando numa noite se depara com uma criatura fantástica, saída do mundo da imaginação. O gigante de mais de 7 metros decide raptá-la, com medo da repercussão, uma vez tendo sido visto pela menina, levando-a para sua terra natal secreta. Aos poucos, a criança assustada percebe que o gigantesco ser é amável e tem um bom coração, desenvolvendo com ele uma relação de amizade ao longo do filme. Porém, nem só de amigáveis gigantes é povoada esta exótica terra, e o BFG (o apelido que ganha da garota) precisará defender sua amiga dos famintos e ainda mais colossais companheiros.
O Bom Gigante Amigo talvez seja o filme mais infantil de Steven Spielberg, mirado aos pequeninos, digamos, com até dez anos de idade. Para isso, o diretor se aliou novamente a roteirista Melissa Mathison (falecida recentemente, em novembro de 2015, aos 65 anos), indicada ao Oscar pelo roteiro de um dos maiores trabalhos da carreira do diretor, E.T. – O Extraterrestre (1982). Os dois filmes possuem alguns elementos em comum, sendo o principal deles a amizade nascida entre uma criança e uma criatura de outro mundo.
Além das referências a E.T., o novo trabalho de Spielberg ecoa seus projetos passados, indo desde Hook – A Volta do Capitão Gancho (1991), com janelas se abrindo em Londres durante a noite para mostrar aos personagens um novo mundo de fantasia, até Jurassic Park (1993) e o recente Tintim (2011). No entanto, existe certa deficiência em O Bom Gigante Amigo, de algo que sirva também aos adultos que irão levar os filhos nesta empreitada. A narrativa é quase inexistente, não há uma jornada que leve do ponto A ao B, e o que temos são amontoados de situações sequenciais.
No lado positivo, vale citar que as cenas são bem exploradas e os momentos possuem a atenção típica de Spielberg, o que faz da obra um filme à moda antiga, sem a pressa incompreensível atual, tendo assim um ritmo deliberadamente propício a explorar personagens e seus relacionamentos. Acreditamos na amizade desenvolvida entre os protagonistas e por isso nos importamos. Outro ponto para o filme é a escolha da protagonista. A jovem Ruby Barnhill é extremamente carismática, uma graça só, entregando uma performance sincera, sem nunca parecer uma criança atuando. É bom perceber que neste quesito, o da escolha de atores mirins e o trabalho com eles, Spielberg não perdeu a mão.
Outro item que sobressai é a maestria dos efeitos visuais. Geralmente não damos muito crédito ao quesito, já que hoje em dia grande parte das produções hollywoodianas domina a técnica, se tornando algo esperado de filmes assim. De tempos em tempos aparece um blockbuster cujos efeitos são tão proeminentes que nos tiram da apatia, nos fazendo perceber o quão evoluída está a técnica usada. Aqui, a captura de movimento é assombrosa, em determinados momentos reproduzindo com perfeição (o que inclui a textura, incrivelmente palpável) seres quase reais.
Dentro das congratulações se encaixa o desempenho de Mark Rylance (o sujeito que roubou o Oscar de Stallone este ano) na “pele” do cômico gigante que troca palavras (uma gag bem legal). Para finalizar, sim, aqui existem piadas sobre flatulência, o que poderia soar como algo depreciativo, vindo de Spielberg. Entretanto, e digo isso como alguém que levanta a bandeira contra humor escatológico, tudo é feito com bom gosto suficiente (e possível) para tornar a coisa engraçadinha, afinal os puns são atômicos, verdes, inodoros e ocorrem quando se consome a típica bebida dos gigantes, um refrigerante que gera bolhas para baixo ao invés de para cima.