Uma pessoa atenta é capaz de observar que a vida cotidiana é rica de histórias, que poderiam facilmente ganhar as telonas. São situações inacreditáveis e pessoas indescritíveis que encontramos ao longo da vida que nos marcam de alguma forma. Algumas dessas pessoas impactam não só na vida de outro indivíduo, mas de toda uma comunidade, como a carismática Gilda, de ‘Os Últimos Dias de Gilda’, nova minissérie do Canal Brasil que estreia essa semana ao grande público.
Gilda (Karine Teles) é uma mulher branca solteira, um pouquinho acima do peso e super bem resolvida. Ela tem uma bela autoestima, é bem vaidosa e sabe correr atrás do próprio sustento. Moradora de uma pequena vila no interior, Gilda tem vários parceiros sexuais, cria as próprias galinhas para vender, é praticante de candomblé e adora uma roda de samba com uma cervejinha. Para ela, a vida é boa, porém muitos de seus vizinhos – como o candidato a vereador Ismael (Higor Campagnaro) e a esposa dele, Cacilda (Julia Stockler) – não gostam da forma liberta e libertina com que Gilda leva a vida, e passam a atormentá-la por causa dos seus costumes. Com o passar do tempo, isso vai gerando uma enorme cisão no núcleo comunitário da pequena vila.
‘Os Últimos Dias de Gilda’ foi inicialmente uma peça de teatro, encenada por Karine Teles há cerca de quatorze anos – um texto escrito para ela por seu amigo, Rodrigo De Roure –; foi adaptado novamente ao teatro alguns anos depois e agora chega ao Canal Brasil no formato de minissérie de quatro episódios, com roteiro escrito pela própria Karine e por seu ex-marido, o diretor e produtor Gustavo Pizzi – uma parceria que também pode ser vista no recente sucesso ‘Benzinho’.
Em ‘Os Últimos Dias de Gilda’ o espectador acompanha uma tragédia anunciada, estilo ‘Dogville’. Assim como no filme de Lars von Trier, a protagonista é o centro dos problemas da comunidade – seu estilo de vida causa inveja, sua liberdade incomoda, sua autoaceitação não é bem aceita, sua autonomia não é bem vista, seu posicionamento não é desejável. A repressão e o controle são apresentados na produção brasileira através da doutrinação religiosa, que autodeclara-se dona da rua e cujos preceitos devem ser seguidos por todos os moradores, encabeçada por Cacilda; do monopólio político, com o candidato Ismael, que demonstra como funciona o esquema de troca de favores e de interesses políticos em pequena escala; e o terrorismo das milícias e da polícia, personificados por Jordão (Erom Cordeiro) e Wallace (Antônio Saboia), que impõe regras aos moradores que, caso não obedeçam, são submetidos à violência e tortura. Não passa despercebido a forma com que o roteiro entrelaçou esses três vieses com o extremismo religioso, que se espalha por todos os âmbitos da sociedade impondo-se à força na sociedade.
Com uma história curta e metafórica, ‘Os Últimos Dias de Gilda’ é uma minissérie que reflete a década carioca de maneira teatral e direta. Faz o espectador refletir sobre como chegamos ao ponto em que chegamos no mundo. Não à toa, estreia às vésperas do segundo turno das eleições.