Para muitos apreciadores e profissionais envolvidos com a mídia cinema, o jovem cineasta japonês Ryusuke Hamaguchi acabou sendo o grande nome autoral da indústria em 2021, pelo menos no que se refere a produção artística, e sobretudo na sua função de diretor cinematográfico. Para além do fascinante Roda do Destino, que será discutido aqui, Hamaguchi lançou, no mesmo ano, o inédito Drive My Car, que não apenas recebeu críticas ainda mais favoráveis, como também venceu diversos prêmios internacionais, mesmo em sua curta trajetória. Aparecendo, dessa forma, como o principal representante do oriente entre os títulos estrangeiros que devem concorrer ao Oscar e as demais premiações.
O realizador oriental já era conhecido por ter feito o igualmente genuíno Asako I & II (2018), que foi selecionado para disputar a Palma de Ouro no Festival de Cannes e surpreendeu pela coragem de trazer a história de uma mulher japonesa apaixonada por dois homens fisicamente idênticos, mas de personalidades antagônicas – um confronto direto a visão da sociedade nipônica. Bem como também por Happy Hour (2015), que, com cerca de 5 horas de duração, foi nomeado em Locarmo pelo seu viés quase documental trazido pelo próprio Hamaguchi, que começou sua carreira no audiovisual justamente como documentarista, quando registrava desastres naturais recentes que devastaram o Japão e deixaram famílias em desespero.
Adentrando, finalmente, em Roda do Destino, Ryusuke Hamaguchi oferece, dessa vez, um tipo de cinema mais verborrágico, que se sustenta apenas em cima dos seus muitos diálogos e na força de personagens curiosamente comuns. É uma tarefa quase hercúlea prender a atenção do espectador, por 2 horas, utilizando pouquíssimas ferramentas narrativas (a trilha sonora, por exemplo, quase inexiste), acreditando quase que totalmente no domínio de tela dos atores e, por assim, as figuras que interpretam. Tudo fica ainda mais evidente quando as cenas se resumem apenas a duas ou três personas, que conversam entre si quase que sem intervalo. Seria como se Quentin Tarantino e Wong Kar-Wai tivessem se encontrado e gerado um ser estranho, mesclando assim uma quantidade cavalar de diálogos advinda do diretor de Pulp Fiction (1994) a normalidade e organicidade do realizador de Amor à Flor da Pele (2001). Não dá pra deixar de citar também a verdade narrativa de John Cassavetes (Uma Mulher Sob Influência) em vários momentos.
Tomando também emprestado alguns dos artifícios utilizados por Haruki Murakami, escritor japonês de imenso sucesso, que, em meio aos contos sérios e reais que produz, insere determinados eventos que beiram o viés da fantasia, do surreal e da extrema casualidade – e daí talvez tenha saído o título inglês, Wheel of Fortune and Fantasy. A estrutura do longa, aliás, é construída em cima de três histórias que funcionam isoladamente, mas, ao mesmo tempo, apresentam personagens femininas com dilemas também particulares, estes que acabam tematicamente sendo correlacionados. Em Magic (or Something Less Assuring), por exemplo, a história que abre o filme, vemos o que parece ser uma conversa trivial entre duas amigas se tornar um dilema de folhetim. Onde uma admite ter achado a sua alma gêmea por, no primeiro encontro, ter trocado confidencias que jamais diria a alguém; e, imediatamente, a outra perceber que ela fala sobre um alguém que já foi também o seu amor. Logo após isso, a amiga que ouviu a confissão tal qual um padre vai ao encontro da então figura mencionada para esclarecer o que foi então àquela relação tão intensa que viveram.
No segundo conto, Door Wide Open, temos uma história de vingança, onde uma mulher aceita o desafio do namorado, ao pedir que ela exponha o seu antigo mestre e professor, agora premiado por um livro de cunho erótico, a uma situação sexual que ele se comprometa criminalmente. No entanto, nessa emboscada, a moça acaba se descobrindo intimamente, ao ponto de mudar a sua perspectiva da vida e, num ato do acaso, mudar para sempre a do professor. Já história final é chamada Once Again, onde uma mulher lésbica e resolvida, numa de suas andanças, esbarra com alguém que para ela foi o seu primeiro e real amor, ainda da época de escola. As duas parecem se conhecer há anos e possuem uma afinidade que há muito não sentiam com ninguém. Acontece que tudo não passou de uma grande confusão, mas ambas tornam-se amigas e descobrem novas facetas sobre a vida que jamais haviam notado.
Todas essas histórias próprias e atípicas acabam se encontrando. Primeiro na dúvida do que é a nossa singularidade na vida de outras pessoas; depois no redescobrimento e esclarecimento de sensações internas; no quão inusitada pode ser a casualidade da nossa rotina; e finalmente por notarmos que o cotidiano é naturalmente imprevisível. Ao restringir o filme apenas a perspectiva daquelas pessoas, sem criar maiores floreios estéticos ou trucagens performáticas, Ryusuke Hamaguchi expõe, de maneira intima, alguns dos constrangimentos e surpresas que enfrentamos diariamente. Se em um momento estamos achando tudo aquilo um caso comum de trânsito, rapidamente julgamos as situações um tanto absurdas, afinal, como algo assim poderia acontecer conosco? O diretor ratifica, com imensa lucidez, a montanha russa que é nossa vida.
Apesar dessas histórias não trazerem nenhuma grande reviravolta ou mesmo proporcionarem plot twists inusitados e momentos catárticos, o filme, o tempo todo, nos faz pensar como tudo teria acontecido caso fizessem diferente. E se decidissem continuar com a relação; e se tivessem seguido com o plano até o fim; e se fossem embora no esclarecimento da confusão; e se… Há sempre algo pequeno, sempre alocado no fenômeno da coincidência, que muda, de maneira repentina e total, o curso da nossa história. Os casos então retratados pelo autor são de fato expressivos, mas já perceberam que despretensioso comentário, pessoal ou numa rede social, pode (ou não) transformar a sua rotina por completo, e até mesmo resultar em algo intenso?
Enfim, essas são apenas algumas elucubrações e constatações válidas desse novo mestre chamado Ryusuke Hamaguchi, que desnuda e expõe, sem rodeios, o que é mundano. E que torna Roda do Destino um filme poderoso e reflexivo, ainda que simplório tecnicamente em sua realização. Inclusive, essa é a tradução perfeita do que é a própria obra fílmica em si, onde, primeiramente, oferece uma experiência corriqueira, mas, logo em seguida, é capaz de impactar como poucas produções contemporâneas do estilo, mudando até percepções intimas.