Cuidado: muitos spoilers à frente.
Sam Raimi é um dos nomes mais conhecidos da indústria do entretenimento e carrega em seu currículo alguns títulos bastante famosos – como ‘Homem-Aranha’, que representou uma grande revolução dentro do gênero super-heroico, e os adorados terrores ‘A Morte do Demônio’ e ‘Arraste-me para o Inferno’. Logo, é apenas natural que os fãs da Marvel Studios ficassem ansiosos para vê-lo fazer sua estreia oficial no MCU com o vindouro ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’, sequência do elogiado filme de 2016 que expandiria ainda mais o panteão e, segundo os próprios nomes envolvidos no projeto, apresentaria a primeira narrativa de terror desse universo infindável.
Honestamente, o primeiro longa-metragem envolvendo o personagem titular não me animou este que vos escreve como deveria e pareceu muito confinado às fórmulas de apresentação para apresentar algo novo, por assim dizer. Entretanto, agora que o MCU se consagra como um dos, senão o mais popular do planeta, é apenas correto que Kevin Feige e sua extensa equipe criativa e técnica conseguisse mergulhar nos quadrinhos originais e construir uma narrativa profunda e envolvente o suficiente para encantar os já adeptos a ele e convidar aqueles que não o conhecem a explorar um mundo de possibilidades. E, no geral, ‘Multiverso da Loucura’ faz um bom trabalho ao trazer à tona uma mixórdia de ação, pancadaria e reflexões bem-vindas, bem como presentes especiais aos que fazem dessa experiência cinematográfica um evento imperdível. Ademais, é Raimi quem rouba nossa atenção por uma condução esplêndida que faz o possível para aparar alguns excessos e construir um enredo convincente e sólido.
É notável como, nos últimos anos, a preferência do gênero fílmico em questão foi se afastar do maniqueísmo entre “mocinhos e vilões” para apostar fichas em personalidades complexas e arcos que fazem sentido dentro da sociedade em que vivemos – como, por exemplo, Thanos em se livrar de metade do universo para que a vida volte a ser sustentável, ou o Mestre do Oceano, em sua raiva justificável contra a toxicidade dos seres humanos e o desrespeito deles contra os mares. Agora, observamos Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) por fim adotar seu alter-ego de Feiticeira Escarlate e canalizar a frustração e o ódio de ter perdido seus entes queridos e ter sido privada da constituição familiar para um reino caótico de vingança e desespero – logo, não é nenhum espanto que ela pose como a suposta “antagonista” da trama.
Wanda está em busca de uma jovem chamada America Chavez (Xochitl Gomez fazendo sua aguardada estreia no MCU), uma adolescente que perdeu as mães em um acesso temerário e tem a capacidade de viajar pelo Multiverso – algo que chama a atenção de Wanda, visto que, caso consiga ceifar os poderes de America, poderá viajar a uma dimensão em que ela esteja ao lado dos filhos e possa encontrar a felicidade merecida. Mas é óbvio que seu plano tem um obstáculo: Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), que não vai deixar uma perigosa Feiticeira dominar o Multiverso e subjugar todos a seus desejos. É a partir daí que o trio, auxiliado por tantos outros personagens conhecidos do cânone da Marvel, mergulha em uma aterrorizante aventura que determinará o destino daquilo que conhecemos.
Talvez o maior problema do filme seja a quantidade absurda de tramas e subtramas que se fundem em uma aglutinação explosiva de cores e sons; de fato, Stephen, Wanda e America têm seus arcos bem desenvolvidos, mas a presença pontual de outros emerge apenas como um fanservice que não vai a lugar a nenhum, como a presença de John Krasinski como Sr. Fantástico (provavelmente o tendo confirmado na ressurreição do ‘Quarteto Fantástico’ como parte do MCU), o retorno de Patrick Stewart como Professor Xavier e de Hayley Atwell como Capitã Carter, e tantos mais. É nesse tocante que o roteiro de Michel Waldron, conhecido por seu trabalho na aclamada animação ‘Rick and Morty’, peca – e cabe a Raimi transformar os deslizes em um deleite imagético que nos mantém presos aos braços da cadeira do cinema do começo ao fim.
O diretor sabe como alcançar o que pretende e não pensa duas vezes antes de referenciar a si próprio e aqueles que lhe serviram de inspiração. Ele cria um dialogismo estético que presta homenagem a ‘A Morte do Demônio’ e a ‘A Noite dos Mortos-Vivos’, de George A. Romero, utilizando-se de técnicas similares para mergulhar no escopo do terror (incluindo maneirismos exagerados); de fato, a fórmula Marvel aparece em todos os atos da produção, e dizer que a história de apoia no horror é exagerar um pouco. Mas não podemos tirar mérito de Raimi em trazer uma bagagem cultural interessante ao projeto e em arquitetar sequências de tirar o fôlego -como, por exemplo, uma cena em que Wanda destrói o Professor Xavier, o Sr. Fantástico, a Capitã Marvel e a Capitã Carter em questão de segundos, ou um espetáculo de suspense em que ela persegue Stephen, America e Christine (Rachel McADams) em túneis subterrâneos.
Como mencionado nos parágrafos acima, ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’ é uma obra bastante divertida que tropeça em aspectos estruturais, mas entrega uma aventura aprazível do começo ao fim. O elemento de maior destaque é Raimi que, quase uma década depois, fez um retorno glorioso às telonas, imprimindo sua própria identidade a um dos mais bem-sucedidos panteões da história.