Série Armamentista de Entretenimento
O mundo mudou. A pergunta é: para pior ou para melhor? Enquanto a sociedade cada vez mais globalizada varre pensamentos racistas, preconceituosos e machistas com a ajuda da opinião pública – trazida pelas mídias sociais – o que termina por dar mais voz e espaço de igualdade para todas as raças e gêneros, muitos clamam existir uma ultra sensibilidade e vigilância. O exagero e o extremismo sempre irão existir, mas o fato é: o mundo melhorou? O que funciona às claras sim, muito. Mas a violência parece cada vez maior. Há alguns anos não tínhamos notícias quase diárias de atentados matando inocentes em cidades pelo mundo como hoje.
Atualmente um dos temas mais debatidos é o armamento de civis. Em algumas cidades dos EUA um cidadão portar arma é legal, deixando espaço para que faça justiça com as próprias mãos. Dessa forma, tirando a justiça das autoridades e trazendo para si próprio. Isso rende uma longa discussão e podemos até pensar que em países onde a lei basicamente ri da nossa cara, como o Brasil, criada por corruptos, seria mais justificável que o cidadão, sempre deixado à mercê da própria sorte, pudesse se defender por conta própria, ao contrário dos EUA onde em grande parte o sistema funciona, e é inclusive bem severo.
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Bem, toda esta introdução para voltarmos aos primórdios, ao cerne do que é o super-herói como conhecemos hoje. Batman, Homem-Aranha e qualquer outro personagem mascarado que aprendemos a amar logo na infância, em tempos muito diferentes, é verdade, são nada mais do que vigilantes, justiceiros, pessoas que pegam para si a justiça, agindo fora da lei (daí que muitos deles são perseguidos pela polícia, e tratados de forma igual aos criminosos que combatem). Pessoas cansadas de um sistema falho, que não pode fazer nada por eles, decidindo então usar uma máscara e caçar criminosos por conta própria. Esses são os valores que continuam a ser passados através de gerações, enaltecidos inclusive por pessoas que na vida real abominam tão ideologia – vai entender, pois é.
Para ser justo, é bem verdade que nenhum, ou a maioria, desses heróis matam os criminosos, apenas os apanham para que as autoridades responsáveis cuidem deles de seu jeito. Bem, isto é, até chegarmos no Justiceiro, um personagem que de fato vai até o fim, não poupando sequer um contraventor que seja. Justamente por isso, começou como vilão nos quadrinhos, até escalar ao posto de anti-herói, o máximo conquistado por ele ao longo dos 43 anos de sua criação.
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O interessante aqui nesta primeira série solo do personagem da Marvel, que já havia ganhado três filmes malfadados (todos lançados direto em vídeo no Brasil), em 1989, 2004 e 2008, interpretado respectivamente por Dolph Lundgren, Thomas Jane e Ray Stevenson, é a escolha por uma trama intrincada, muito mais semelhante a um thriller político de espionagem, que remete aos filmes de Jason Bourne, do que simplesmente ter o personagem perseguindo e matando bandidos e mafiosos em Nova York das mais variadas formas. E isso é outro acerto da Marvel e do criador Steve Lightfoot, responsável também pela série Hannibal (2013 – 2015). Quando escrevi sobre as outras séries da Marvel na Netflix, apontei o fato de uma eventual estrutura repetitiva, já que em seu âmago é exatamente isso que heróis urbanos como Demolidor e Luke Cage fizeram, combateram a criminalidade em seus bairros distintos.
O Justiceiro e seu alter ego Frank Castle apareceram pela primeira vez, já na forma do metódico Jon Bernthal, ano passado na segunda temporada do Demolidor, e roubou os holofotes. No programa, o personagem se comportou como o lado sombrio do herói cego, que como apontava Castle: “estava a um dia ruim de se tornar igual a ele”. Os dois lados da mesma moeda se contrabalancearam bem, mas a dúvida era, como o Justiceiro se comportaria sozinho? Felizmente a resposta é: se comporta extremamente bem. Ou devo dizer mal.
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Aqui, o passado do protagonista recebe um upgrade, e ele passa de um policial de Nova York, para um herói de guerra, um fuzileiro naval treinado para matar. Ao descobrir uma operação ilegal orquestrada por seus superiores envolvendo tráfico de droga, o sujeito tenta botar a boca no trombone, mas termina tendo sua família assassinada e sendo dado como morto. Além do trauma da perda, o protagonista ainda precisa lidar com os fantasmas de guerra que o assombram, lembranças de quando matou em nome do país, muitas vezes de forma cruel e injustificada.
Como Bernthal disse em declarações, O Justiceiro é mesmo uma série para incomodar. Deixa desconfortável o público como nunca anteriormente uma série Marvel / Netflix fez. Seja pelo grafismo de sua violência exacerbada, que faz filmes 18 anos de heróis vide Logan e Deadpool parecerem animações da Disney em comparação; mas muito mais por suas ideias fervorosas, sempre acompanhadas de questões pra lá de polêmicas. Por exemplo, existe toda uma subtrama envolvendo o personagem Lewis Walcott (Daniel Webber), um jovem que ao voltar para casa de seu serviço militar, não acha lugar na sociedade, e começa a se fechar para o mundo. Pense em Rambo no primeiro filme, aquele tipo de personagem errático que não dá uma dentro e imerge numa paranoia sem fim acreditando que o mundo está contra ele.
Assista nosso vídeo de ‘Os Defensores’
As cenas com o personagem de Webber rendem socos no estômago consecutivos, ao percebermos a descida espiral que o jovem vai sofrendo, as decepções que vai tendo, quebra de confiança em relação a pessoas próximas e por aí vai. Seus níveis de insanidade são muito bem trabalhados pelo programa, transformando o personagem numa verdadeira tragédia ambulante, um acidente de trem esperando para acontecer. É impossível não sentir sua dor, ao mesmo tempo situando-se na impotência de todos ao redor que tentam ajuda-lo sem êxito. Quando tudo o que você quer é justiça, mas termina por se tornar o vilão da história. É de tirar o fôlego.
O Justiceiro é uma série que defende o uso de armas do cidadão. Talvez por isso seu painel tenha sido retirado de um evento voltado para a cultura pop, que ocorreu muito próximo aos atentados em Las Vegas, teve sua estreia adiada, e correu o risco de ser cancelada. Nem irei levantar a especulação de refilmagens, pois a série já estava pronta e não daria tempo para isso. O que pude assistir de antemão foi o que havia sido planejado.
Assista ao nosso vídeo com SPOILERS! de ‘Os Defensores’
E quando me refiro a ser uma série armamentista, não cito o protagonista, já que isto seria redundância. Me refiro à outra personagem, Karen Page (Deborah Ann Woll). A mocinha indefesa da série Demolidor, que cansou de ser alvo de bandidos e optou por andar armada. A série mostra uma entrevista realizada por ela (agora jornalista) com um político, que pede pelo desarmamento. O tópico da entrevista inclusive é este. Mas quando o local é atacado, o tal político foge de medo, chegando ao cúmulo de jogar a mulher aos leões, que consegue ser salva… justamente devido ao uso da arma que carrega na bolsa. Tudo isso após a afirmação do presidente Trump de que não irá apertar uma lei de desarmamento, já que foram cidadãos armados que conseguiram interceptar e impedir mais vítimas no último atentado no Texas.
Tá bom, entendemos o recado Justiceiro.
Na parte apenas de entretenimento, O Justiceiro cria boas reviravoltas, como a relação de Frank Castle com seu melhor amigo, o agora empresário do ramo da segurança privada Billy Russo, personagem vivido por Ben Barnes (Westworld), cujo fãs de quadrinhos conhecem bem e já sabem pelo que esperar – o desfecho deixa um imenso gancho para tanto.
Tudo isso faz de O Justiceiro uma das melhores séries da Marvel, conseguindo caminho livre direto para o topo da lista, com sua relevância e imediatismo se posicionando ao lado de pratas da casa como Jessica Jones e Demolidor. Isso porque a fantasia pode ser muito boa, mas a ficção é sempre melhor quando espelha a realidade de forma urgente.