sábado, abril 20, 2024

Crítica | Tolkien – Entre a ficção e a realidade, existe um criador

“Em um buraco no chão, vivia um hobbit”

No Manual da Pintura e Caligrafia de José Saramago, uma das idéias centrais que ele explora é a de que “toda a verdade é ficção”. Se pensarmos bem, não há como discutir, afinal, o que é a história, se não, o relato de acontecimentos sob o ponto de vista de alguém, com todas as suas referências e seus vícios? Não seria uma lembrança muito diferente de um sonho e assim, o que foi fato, agora, se torna apenas uma construção?

Tolkien – cinebiografia não endossada pela família do escritor – navega entre o real e o imaginário para desenhar a trajetória do homem cujas obras, em especial as que exploram o universo de Eä (dos quais fazem parte O Hobbit, Senhor dos Anéis), tiveram um impacto enorme na literatura de fantasia moderna e, mais recentemente, na cultura pop como um todo. Não que a vida de J.R.R. Tolkien já não fosse, por si só interessante, mas recapitulações de momentos chave de sua vida com altas doses de fantasia e liberdades poéticas funcionam como um compêndio para apontar ou referenciar de onde ele pode ter tirado as principais ideias para a criação de suas obras.

O filme intercala o crescimento de Tolkien, sua relação com a mãe e a forte influência dela em uma educação recheada de contos e lendas, a orfandade, a vida sob os cuidados do padre Francis e da Sra. Faulkner, o primeiro – e maior amor – por Edith Bratt, a vida acadêmica, a convivência com os amigos Robert Gilson, Christopher Wiseman e Geoffrey Smith, com quem formou o T.C.B.S (Tea Club Barrowian Society), a entrada na universidade, com uma sequência em que quase morreu durante a primeira guerra mundial na fatídica batalha de Somme. Nesse ponto, o filme tem fortes ecos de outra biografia disfarçada de ficção – ou seria ficção disfarçada de biografia? – “Em busca da Terra do Nunca”, ao brincar com a narrativa e florear a realidade com todos os toques de ficção possíveis, sem perder o ponto de que ainda se trata da vida de alguém que realmente existiu.

Cada sequência é permeada de momentos que extrapolam a crueza da realidade, evocando toques de fantasia, de beleza e terror, que fazem eco a suas obras. O mais evidente são os momentos em que nos vemos nas trincheiras com Tolkien. Febril, acompanhado pelo soldado “Sam” Hodges – que teima em não sair de seu lado – ele segue em fuga do local comprometido para encontrar outro pelotão, onde seu amigo está lotado. A visão dos soldados inimigos avançando com armas se transforma em cavaleiros com espadas em punho, e as chamas das explosões, assim como as sombras das nuvens de fumaça, se confundem com imagens de demônios e criaturas, e mesmo do próprio Sauron, habitantes das terras devastadas de Mordor.  Movimentos de horror que não se acanham em apostar numa estética farsesca, exatamente para distanciar a narrativa da crueldade da guerra, explorando uma fotografia mais quente, sequências em câmera lenta entre outras trucagens que se aproximam mais da fantasia épica que de um típico filme de guerra como um “Resgate do Soldado Ryan”. Um grande acerto da produção.

Saindo das sequências de Somme, o restante do filme é correto, sem grandes destaques de interpretação ou aspectos narrativos inéditos. Não é um defeito, mas também não chega a ser um elogio. O trabalho de Nicholas Hoult tem bons momentos mas, novamente, ele brilha nas sequências de guerra muito mais que nas sequências que exploram a construção da primeira de várias que permearam sua vida, “irmandade” formada ainda no colégio. Temos aí, mais uma vez, uma analogia a Sociedade do Anel que viria a nascer anos mais tarde.

Entre os personagens, Laura Donnelly passaria batido no papel da mãe de Tolkien pela sua curta participação no filme, no entanto, nas poucas cenas que aparece, ela abraça e entende a importância do personagem e sua ligação com o filho (papel de Harry Gilby na juventude) a ponto de ser lembrada. Já Lily Collins, para seguirmos com as mulheres da trama, não se compromete e constrói uma Edith que funciona, mas falta algum encanto. Lily, por si só, tem um carisma, uma personalidade encantadora, um sorriso doce e agradável, e isso sempre transparece em seus trabalhos (neste filme, ele nos agarra em uma cena nos fundos de um teatro), mas parece insuficiente aqui, ficando na superfície de Lily sendo Lily.

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Ponto importante na história de Tolkien se construindo, de um jovem superdotado em um respeitado linguista, é mesmo a irmandade formada no colégio. A influência desse grupo, nas necessidades, discussões, o encorajamento que um dava ao outro, aspectos que, hoje, chamamos de “brodagem”, formam os alicerces para a construção dos laços de amizade e cumplicidade, tão importantes nas obras de Tolkien. Dentre os integrantes da Irmandade formada na King Edward’s School, destaco o bom trabalho de Anthony Boyle no papel de Geoffrey Bache Smith, que de sutil e muito dolorida interpretação, explora os limites entre o amor fraterno e o amor romântico que o personagem expressa por Tolkien seja pelos olhares, seja pelas palavras – em uma cena na universidade chega a doer ver esse amor platônico ser exposto, mas também, ao fim, ter uma devida resposta a essa devoção.

Mais uma vez, temos ecos de outro filme, aqui o clássico “Sociedade dos Poetas Mortos” parece ter influência forte nas escolhas de roteiro e abordagem.

O filme deixa de lado pontos importantes da vida de Tolkien – como a amizade com C S Lewis (que talvez merecesse um filme próprio) – e, ao mesmo tempo, procura dar um ar de fábula e lenda a um criador de fábulas e lendas. Não se aventura muito além de narrativas e estilos já conhecidos. Mais uma vez, não é, nem de longe, um defeito, mas também não inspira novidade ou frescor. É uma sessão gostosa, que deve cobrar alguma lágrimas (em especial, ao final) e, ainda que a família não aprove, deve sobreviver a algumas revisões.

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