Achou o título da matéria estranho? Controverso? Excêntrico? Pois bem, a intenção foi essa mesmo. Afinal, todos esses adjetivos se aplicam perfeitamente a Cruella, o mais novo sucesso da Disney que ajudou a recuperar um pouco da fé do público nos live actions de franquias clássicas do estúdio. A trama é bem interessante e faz uma releitura criativa de 101 Dálmatas, sem se prender aos dois filmes feitos nos anos 1990. A história se passa em Londres em plena época do movimento punk rock, e o filme deixa bem claro que essa escolha não é mera coincidência ao incorporar toda a subversão da época a elementos narrativos e aos próprios personagens. É como se todo o deboche e extravagância da Cruella se fizesse presente ao longo da história, ditando o ritmo da trama ao brincar com polêmicas que povoam as principais rodas de debate sobre blockbusters nos dias de hoje.
A começar pelo elenco em si. Não existe nada que seja tão certo de gerar burburinho negativo para um filme quanto a mudança de etnias. Basta um dos milhares de personagens brancos que já existiam previamente ser retratado nas telonas como uma pessoa negra ou asiática para que milhares de trolls ou fãs muito conservadores surjam on-line reclamando e dizendo não vão ver o filme porque o estúdio “estragou a infância” deles. Como a própria Cruella não poderia ligar menos para a opinião alheia, o casting desse filme traz uma Anita (Kirby Howell-Baptiste) negra, um Roger (Kayvan Novak) descendente de iranianos, e um Gaspar (Joel Fry) inteligente com cabelos encaracolados. As mudanças de etnia acontecem como se estivessem propositalmente provocando esses fãs mais conservadores a reclamarem, apontando o dedo para a plateia e perguntando: “E aí? Vai reclamar agora?”. E os espectadores simplesmente não conseguem reclamar, porque o desenvolvimento dos personagens é tão legal, tão bem feito, que a cor deles é o que menos importa.
Da mesma forma, outro assunto que costuma gerar polêmica é a presença de personagens homossexuais. Com Artie (John McCrea), que adota um visual bem extravagante, a Disney introduz um personagem homossexual e ainda deixa no ar Horácio (Paul Walter Hauser) ter uma identificação com o personagem, deixando em aberto. E não são personagens jogados ali de graça ou forçar uma representatividade. Não, eles entram na trama de forma natural, agregando bastante ao filme.
Outro ponto que não costuma agradar muito ao público é a troca de papeis entre heróis em vilões. E num filme no qual a protagonista é uma mulher conhecida por seu desejo de matar filhotes de Dálmatas, havia essa preocupação sobre como seria retratada a violência contra os animais. A saída encontrada para isso é bem satisfatória e não reduz em nada o peso da Cruella na história. Na verdade, a forma como conduzem a personagem de uma menina que sempre carregou a maldade dentro de si e tentou esconder ao longo da vida foi simplesmente sensacional. Tudo isso impulsionado por uma atuação brilhante da Emma Stone, que sabe transitar entre o caricato e o chocante de forma magistral. E sabendo como a crítica de Hollywood nutre forte aversão ao caricato, inserir esses momentos típicos de vilã clássica de filme infantil foi uma jogada de mestre.
Essa questão da protagonista feminina subversiva não é novidade para o diretor, já que o australiano Craig Gillespie, também foi responsável pela direção de Eu, Tonya (2017), que conta de maneira bem crua, perversa e divertida a trágica histórica real da patinadora Tonya Harding (Margot Robbie), cuja vida foi marcada por abusos, agressões e uma polêmica gigantesca no fim da carreira. Ou seja, ele já tinha essa baita bagagem para conduzir a “biografia” da Cruella. No entanto, sai a patinação e entra o mundo da moda, também conhecido por uma série de assédios morais. E o jeito que ele encontra para criar uma vilã para um filme sobre a vilã sem apelar para o clichê de botar os “mocinhos” no papel de antagonistas é divertidíssimo de acompanhar.
E não há como falar da subversão desse filme sem lembrar dos figurinos. Dentro da própria Disney há uma tendência terrível nesses live actions de recorrer a vestidos de CGI, vide Cinderela (2015) e A Bela e a Fera (2017). Dessa vez, eles convocaram Jenny Beavan, vencedora de dois Oscar de Melhor Figurino, para trabalhar os figurinos e, sem qualquer tipo de exagero, trazer vida para a história. Sem o trabalho de Jenny, que produziu alguns dos vestidos mais impressionantes do cinema recente, o longa não seria a mesma coisa. E é pouco comum sair de um filme comentando tanto sobre o figurino quanto neste filme. É como se os vestidos, casacos e adereços contassem uma história própria, refletindo não apenas a personalidade das personagens, mas também a personalidade londrina da época. É um trabalho literalmente fabuloso e que agrega um valor indescritível à produção.
Por fim, a trilha sonora brinca muito com a época em questão, trazendo clássicos do punk rock, mas também faz uso de temas que ficaram recentemente marcados em filmes de super-heróis. O público base de um filme ambientado no universo da moda e o de filmes sobre heróis sombrios não costuma ser o mesmo, falando por uma perspectiva mais comercial. Então, trazer essa mistura rompe com todas as expectativas.
Essa ideia subversiva só é possível graças a uma mistura de vários talentos que compõem Cruella. Assim como a personagem, que convive com diferentes personalidades dentro de si, esses diferentes setores, como direção e figurino, ganhando vozes próprias e coexistindo para contarem uma grande história, se revelam algo poderoso e marcante. Tudo bem que é básico para um grande filme que esses setores se entendam, mas o caso aqui é que cada um vai para um lugar de forma quase autônoma e acabam se combinando com perfeição, entregando um dos melhores live actions dos clássicos da Disney, senão o melhor.
Cruella está em cartaz nos cinemas e no Disney+ por meio do Premier Access.