quarta-feira , 20 novembro , 2024

Dica de Série | ‘Dickinson’: uma série deliciosamente anacrônica

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Emily Dickinson foi uma importante poeta norte-americana que nasceu na controversa época do abolicionismo estadunidense e no auge da guerra civil entre as províncias sulistas e nórdicas. Talvez por essa razão Dickinson se viu de frente para uma dura época para a insurgência do feminismo literário, visto que estava enclausurada dentro de uma família que condenava o movimento sufragista e a presença das mulheres em outro lugar além dos restritos aos afazeres domésticos. Entretanto, isso não impediu que a escritora se aventurasse no mundo criativo e, apesar de ter publicado poucos poemas quando viva (alguns sob pseudônimos masculinos), tornou-se um expoente do modernismo do século XIX e ganhou aclame postumamente, com mais de 1700 textos escritos.

Em 2019, a infame e rebelde escritora migrou para as telinhas com o lançamento de Dickinson, uma das primeiras séries originais do serviço de streaming Apple TV+. Aqui, a showrunner Alena Smith, conhecida por seu trabalho em ‘The Affair’, abraçou com incrível respeito a história de Emily e transformou um drama qualquer de época em uma anacrônica obra audiovisual que, apesar de oscilante em alguns aspectos, entrega uma jornada aprazível e que mistura elementos do onírico e do real em um mesmo escopo. Na verdade, o show se transforma em uma irreverente perspectiva acerca de seu cotidiano, explorando camadas familiares, pessoais e profissionais que, até hoje, reafirmam sua importância para a História.



Hailee Steinfeld, saindo de uma ótima interpretação em ‘Bumblebee’ e resgatando certas inclinações performáticas de ‘Quase 18’, interpreta a personagem principal e logo de cara consegue nos envolver com uma atuação que tangencia a perfeição. Diferente dos longas-metragens e produções televisivas de época, as quais normalmente prezam pelo preciosismo cênico e pelo melodrama narrativo, percebemos que Smith e seu compacto time de diretores têm um apreço delicioso pela irreverência artística: os diálogos eruditos são substituídos por versões contemporâneas que acertam em cheio no que pretendem explorar, construindo laços de envoltura com o público e transfaz algo pesado em uma trama leve o bastante para nos carregar pela temporada.

Desde o princípio, Emily mostra-se como uma jovem mulher que não aceita os preceitos impostos por sua conservadora família: para seu pai, Edward (Toby Huss), que escreveu uma tese extremamente “patrocêntrica” sobre o sexo feminino, ter uma escritora na família é sinônimo de vergonha e de destruição do legado que levou gerações para ser construído. Na verdade, a família Dickinson é uma das mais importantes do condado de Amherst e, agora que Edward pretende concorrer ao senado, nada pode ficar em seu caminho. E é claro que, seguindo essa ideologia tradicional ao extremo, ele é respaldado tanto pela esposa (Jane Krakowski) e pelos filhos Austin (Adrian Enscoe) e Lavinia (Anna Baryshnikov), deixando Emily sozinha nessa luta por independência.

A protagonista funciona como uma heroína aos avessos, portando-se em âmbito divergente daquilo que a sociedade lhe impõe: seus momentos de quase desistência são combustível para a produção de poemas incríveis e cultivam um fértil território para que nós sejamos imersos por divagações psíquicas materializadas da forma mais inesperada possível. Ora, em vários episódios, Emily tem conversas e encontros com a própria Morte (interpretada por Wiz Khalifa) e, em outros, é visitada por uma espécie de abelha mutante que é sua principal confidente. A possibilidade de cair nas fórmulas de uma novela é premeditada desde o princípio e, desse modo, as varre para debaixo do tapete, optando pela constante quebra de expectativa.

Guiada por nomes como David Gordon Green e Stacie Passon, a iteração eventualmente abole a cronologia história com tanta frieza e absolutez que pode chocar aqueles que esperavam algo menos ousado e mais contido. De fato, a telebiografia é fundida com um desconstruído didatismo que engendra o futuro e que deixa claro para os espectadores que Emily Dickinson se tornaria um nome conhecido, ainda que depois de sua trágica morte. Para além disso, o roteiro abre espaço para explorar tabus de época, desmistificando a personalidade reclusa da personagem principal e deixando claro que ela não se infiltrava em nenhum rótulo: desde a sexualidade que compartilhava ao lado da melhor amiga, Sue (Ella Hunt) até o momento em que perde duas grandes pessoas de sua vida, ela vive como bem entende e, vez ou outra, é enfrentada pelo pai.

Steinfeld e Krakowski roubam a cena o tempo todo, principalmente por suas personalidades tão opostas. É claro que o restante do elenco também é agraciado com seus momentos de glória, mas as múltiplas subtramas convergem organicamente para Emily. Ao adicionar mais e mais personagens, é quase impossível impedir que a série se transforme em um drama familiar que deixa de lado sua coesão; felizmente, os aspectos positivos falam mais alto e, apesar do irregular ritmo, nos conduzem com maestria para um empoderado season finale que já prepara o terreno para o próximo ciclo.

Dickinson não é uma série para um público generalizado – e a escolha de aglutinar jargões e gírias atuais em uma atmosfera clássica a restringe a um nicho complicado. Mas, para aqueles fisgados desde o episódio piloto, a produção é simples, hilária e apresenta uma versão nova dos fatos sobre um dos nomes mais importantes da literatura do século XIX.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 2019, a infame e rebelde escritora migrou para as telinhas com o lançamento de Dickinson, uma das primeiras séries originais do serviço de streaming Apple TV+. Aqui, a showrunner Alena Smith, conhecida por seu trabalho em ‘The Affair’, abraçou com incrível respeito a história de Emily e transformou um drama qualquer de época em uma anacrônica obra audiovisual que, apesar de oscilante em alguns aspectos, entrega uma jornada aprazível e que mistura elementos do onírico e do real em um mesmo escopo. Na verdade, o show se transforma em uma irreverente perspectiva acerca de seu cotidiano, explorando camadas familiares, pessoais e profissionais que, até hoje, reafirmam sua importância para a História.

Hailee Steinfeld, saindo de uma ótima interpretação em ‘Bumblebee’ e resgatando certas inclinações performáticas de ‘Quase 18’, interpreta a personagem principal e logo de cara consegue nos envolver com uma atuação que tangencia a perfeição. Diferente dos longas-metragens e produções televisivas de época, as quais normalmente prezam pelo preciosismo cênico e pelo melodrama narrativo, percebemos que Smith e seu compacto time de diretores têm um apreço delicioso pela irreverência artística: os diálogos eruditos são substituídos por versões contemporâneas que acertam em cheio no que pretendem explorar, construindo laços de envoltura com o público e transfaz algo pesado em uma trama leve o bastante para nos carregar pela temporada.

Desde o princípio, Emily mostra-se como uma jovem mulher que não aceita os preceitos impostos por sua conservadora família: para seu pai, Edward (Toby Huss), que escreveu uma tese extremamente “patrocêntrica” sobre o sexo feminino, ter uma escritora na família é sinônimo de vergonha e de destruição do legado que levou gerações para ser construído. Na verdade, a família Dickinson é uma das mais importantes do condado de Amherst e, agora que Edward pretende concorrer ao senado, nada pode ficar em seu caminho. E é claro que, seguindo essa ideologia tradicional ao extremo, ele é respaldado tanto pela esposa (Jane Krakowski) e pelos filhos Austin (Adrian Enscoe) e Lavinia (Anna Baryshnikov), deixando Emily sozinha nessa luta por independência.

A protagonista funciona como uma heroína aos avessos, portando-se em âmbito divergente daquilo que a sociedade lhe impõe: seus momentos de quase desistência são combustível para a produção de poemas incríveis e cultivam um fértil território para que nós sejamos imersos por divagações psíquicas materializadas da forma mais inesperada possível. Ora, em vários episódios, Emily tem conversas e encontros com a própria Morte (interpretada por Wiz Khalifa) e, em outros, é visitada por uma espécie de abelha mutante que é sua principal confidente. A possibilidade de cair nas fórmulas de uma novela é premeditada desde o princípio e, desse modo, as varre para debaixo do tapete, optando pela constante quebra de expectativa.

Guiada por nomes como David Gordon Green e Stacie Passon, a iteração eventualmente abole a cronologia história com tanta frieza e absolutez que pode chocar aqueles que esperavam algo menos ousado e mais contido. De fato, a telebiografia é fundida com um desconstruído didatismo que engendra o futuro e que deixa claro para os espectadores que Emily Dickinson se tornaria um nome conhecido, ainda que depois de sua trágica morte. Para além disso, o roteiro abre espaço para explorar tabus de época, desmistificando a personalidade reclusa da personagem principal e deixando claro que ela não se infiltrava em nenhum rótulo: desde a sexualidade que compartilhava ao lado da melhor amiga, Sue (Ella Hunt) até o momento em que perde duas grandes pessoas de sua vida, ela vive como bem entende e, vez ou outra, é enfrentada pelo pai.

Steinfeld e Krakowski roubam a cena o tempo todo, principalmente por suas personalidades tão opostas. É claro que o restante do elenco também é agraciado com seus momentos de glória, mas as múltiplas subtramas convergem organicamente para Emily. Ao adicionar mais e mais personagens, é quase impossível impedir que a série se transforme em um drama familiar que deixa de lado sua coesão; felizmente, os aspectos positivos falam mais alto e, apesar do irregular ritmo, nos conduzem com maestria para um empoderado season finale que já prepara o terreno para o próximo ciclo.

Dickinson não é uma série para um público generalizado – e a escolha de aglutinar jargões e gírias atuais em uma atmosfera clássica a restringe a um nicho complicado. Mas, para aqueles fisgados desde o episódio piloto, a produção é simples, hilária e apresenta uma versão nova dos fatos sobre um dos nomes mais importantes da literatura do século XIX.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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