quinta-feira, setembro 19, 2024

Exclusivo | Entrevista Cidade; Campo – Juliana Rojas: “O Corpo Também é um Território; uma Espaço de Afeto e Identidade”

“Processar luto, processar trauma e lidar com o recomeço são as temáticas do filme”, explica Juliana Rojas sobre Cidade; Campo. Lançado nos cinemas brasileiros no último dia 29 de agosto, o quarto longa da diretora brasileira teve sua estreia mundial, e foi premiado, na 74° Berlinale – Festival de Berlim, em fevereiro deste ano. 

Durante o evento na capital alemã, o CinePOP teve a oportunidade de uma entrevista exclusiva com a cineasta antes da sua premiação como Melhor Direção da mostra paralela Encounters. Ao longo do bate-papo, Juliana falou das suas inspirações para o projeto, as causas sociais debatidas, como exploração do trabalho e representatividade lésbica, além de não deixar de lado sua marca registrada: a atmosfera fantasmagórica. 

cidade campo filme b

Cidade; Campo conta duas histórias de migração, memória e fantasmas entre a cidade e o campo. Após enchentes devastadoras em sua cidade natal, a trabalhadora rural Joana (Fernanda Vianna) se muda para São Paulo para encontrar sua irmã Tânia (Andrea Marquee), que mora com o neto Jaime (Kalleb Oliveira). 

Em um segundo momento, Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) lutam para recomeçar a vida em uma casa abandonada, mas a primeira desconfia haver algo na mata ao redor da residência e essa suspeita abala o relacionamento entre as duas. Confira abaixo a entrevista com a nossa maior cineasta do horror fantástico brasileiro atualemente. 

Um Ponto e o Recomeço

CinePOP: Como você escolheu este título Cidade; Campo, a poética do ponto e vírgula, como uma pausa e recomeço? Você já tinha a intenção de fazer o filme em duas narrativas? 

Juliana Rojas: É uma linguagem poética, um ponto e vírgula tem uma pausa, mas também tem uma ideia de continuidade na mesma sentença. É isso que eu queria pro filme, dividido em duas partes, duas histórias com personagens e locais diferentes, mas que tivesse também uma relação entre esses dois espaços e entre os elementos dessas histórias. A motivação do filme é refletir sobre as nossas origens e como isso nos afeta. Além disso, conhecer a existência e a identidade desses dois lugares [cidade e campo]. 

Relações de Exploração do Trabalho 

CinePOP: Você trata nos seus outros filmes Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2017) dessa relação do patrão empregado, e agora com a precarização do trabalho com aplicativo, e o que não tínhamos visto antes que é o trabalho rural. Como você teve a ideia de integrar o trabalho do campo nessa sua perspectiva do horror da relação entre as pessoas e o trabalho?  

Juliana Rojas:  O trabalho rural entra num aspecto diferente do que na cidade; embora tenha a ver com elementos que eu venho falando nos outros filmes, nesse a precarização é o que chamamos de “uberização” da força de trabalho. Acredito que é um elemento interessante da história da Joana [que vem do campo para cidade]. 

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Já o campo acho que tinha a ver com como essas relações de trabalho dentro do campo, mesmo numa lógica de uma fazenda que você está cultivando para você e para vender. Com a chegada opressora dos cultivos de soja, de cana, de milho pelas grandes empresas,  que compram espaços gigantescos de terra, isso tem mudado. Existe não somente a questão da agressividade para expulsar o pequeno produtor, mas também a questão ambiental, de como isso afeta e destroi os recursos naturais desses lugares. Os mais vulneráveis sempre são as pequenas comunidades.

Juliana Rojas
Letícia Alassë e Juliana Rojas no Festival de Berlim 2024

Baseada nos Casos de Mariana e Brumadinho?

CinePOP: Um assunto também que acredito que é bastante ousado em Cidade; Campo é falar sobre a tragédia que aconteceu com a ruptura da barragem nas cidades de Minas Gerais. A personagem Joana representa esse sobrevivente que perdeu tudo e tenta recomeçar, é isso muito impactante pra gente relembrar. Quando você decidiu trazer essa essa tragédia para narrativa?

Juliana Rojas: Para mim, a inspiração foram relatos de pessoas que foram vítimas do desastre tanto de Mariana quanto Brumadinho, porque foi algo que me impactou pessoalmente até por eu ter vários familiares, não na região específica, mas em Minas Gerais, então uma região que eu conheço. Essa região foi totalmente destruída, a natureza, o rio, as pessoas, as comunidades, tudo desapareceu. 

Acompanhei muito de perto, para mim, além do simbólico, é [uma reflexão de] um desastre causado por uma empresa estrangeira que vem explorar recursos no Brasil e causar um impacto natural extremamente agressivo. Eles destroem os locais e depois seguem em frente, seguem lucrando.

Representa, portanto, muito bem como funciona o capitalismo. Não cito no filme [as cidades] porque não é um filme sobre esses eventos em particular. Apesar de remeter, não achei adequado, porque se eu fosse falar desse episódio particular teria que ser um filme inteiro sobre isso. [Este assunto] é muito complexo e tem muitas camadas e muitos personagens. 

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Sexualidade Homoafetiva Feminina na Tela

CinePOP: Outro assunto que eu queria trazer é também a ousadia da segunda parte do filme, com o casal Flávia e Mara e a cena de relação sexual entre elas. Atualmente, o público tá muito pudico. Por exemplo, Pobres Criaturas [filme de Yorgo Lanthimos, indicado a 11 Oscars, 4 vitórias], as pessoas reclamam por ter cenas de sexos. Como você decidiu introduzir uma cena que a gente não tá habituado no cinema brasileiro de forma natural, não sendo esta a temática principal. Qual a importância dela no filme ?

Juliana Rojas: A presença dessa cena tem vários aspectos. A história sobre esse casal busca compreender essa mudança de construir a vida nesse outro local, nessa fazenda, após a morte do pai da Flávia. Essa parte é sobre a relação delas e como elas lidam com essa mudança. Era importante tê-las como um casal sapatão e que eu representasse o amor delas, até porque depois dessa sequência começa uma fase da história que elas começam a se afastar. Ou seja, tinha a ver com a construção dramatúrgica dessa segunda parte, além disso acho que tem a ideia também de representação do corpo.

Como a Mirella [Façanha], que faz a Flávia, falou no debate da premiere tem a questão de serem corpos que não são geralmente representados nos filmes e ainda mais em cenas assim, pois são copos sapatões, gordo e negro, portanto existe a importância de criar essas imagens e também a ideia de que o corpo também é um território da gente, um espaço de afeto e identidade.

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Cinema de Gênero Brasileiro

CinePOP: Para finalizar, queria falar do aspecto fantasmagórico do filme. Como você encontrou essa atmosfera, teve alguma inspiração? Para mim, remete ao filme Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2010, do Apichatpong Weerasethakul. Você o tinha visto e o teve como referência? 

Juliana Rojas: Com certeza, assisti muitos filmes que lidam com fantasmas e com relação à natureza. Buscando inspiração, eu lembro do filme japonês A Floresta dos Lamentos [2007], da Naomi Kawase, e tem a ver com uma personagem num processo de luto e ela recorre a floresta como um significado de espiritualidade, é um filme que me marcou bastante. Tio Boonmee [quer dizer, o cineasta Apichatpong] também gosto muito da cinematografia dele, acho que temos elementos em comum, como a relação entre o passado e o presente, isto é, a memória e o presente, a relação entre a natureza e o urbano, várias coisas, então, com certeza, teve uma inspiração.  

CinePOP: Falei que era a última ,mas por curiosidade, depois de Sinfonia da Necrópole [Juliana Rojas, 2014] e agora que tem uma canção original “Alecrim” neste filme, você planeja fazer um filme totalmente musical? 

Juliana Rojas: Não, por enquanto não, mas eu adoraria. Tenho vontade sim, tenho vontade de ver um filme totalmente musical. “Alecrim”, do filme, foi minha mãe que compôs a letra e a música 

Veja a entrevista completa no YouTube: 

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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