domingo , 22 dezembro , 2024

‘Neon Genesis Evangelion’ | Os 25 Anos do IMPACTO da famosa animação japonesa

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Neon Genesis Evangelion foi o terceiro e derradeiro impacto no gênero de ficção científica dos animes

* Texto contém leves spoilers do episódio 16 e do final do anime



“Ataque do Anjo”

Por volta do ano de 1995, uma história sobre robôs gigantes pilotados por adolescentes e que combatem monstros gravaria seu nome na história. Combinando ação exagerada com a discussão sobre temas como espiritualidade e instabilidade emocional, Neon Genesis Evangelion soube como dar sequência ao longo legado de produções sci-fi anteriores, bem como levá-las a um novo nível. 

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A indústria de animações japonesas é bastante variada em questão de tipo de produção e como determinada produção flui entre eles. Alguns exemplos são os gêneros de slice of life (cotidiano, geralmente passado no ambiente escolar), seinen (histórias de cunho mais adulto e com maior grau de violência), shonen (voltados para o público infanto-juvenil e com histórias focadas em lutas) e sci-fi

Este último talvez seja o que mais se inspirou e se inspira em produções ocidentais, seja na questão de uma estética futurista ou de elaboração de enredos. O gênero também é bastante creditado por ter sido um dos primeiros a empurrar a cultura pop japonesa de uma fase “imatura” para uma “consolidada”. Para tanto é interessante neste texto, para fins didáticos, dividi-lo em três períodos. 

Lançado em 1990, o mangá “Battle Angel Alita” é uma peça importante do gênero Sci-Fi

O primeiro deles foi a estreia do anime Astro Boy em 1963, baseado no mangá homônimo de 1952 escrito por Osamu Tezuka. A modernização do conto do Pinóquio, conforme definido pelo tradutor para a versão em inglês Frederik Schodt, foi a primeira vez que traços impressos em um mangá ganharam movimentos em uma animação, bem como a estreia de uma animação japonesa no mercado americano. A visão que Tezuka demonstrava para o futuro, um misto de animação com o potencial tecnológico e pessimismo, também foi exposta por ele em sua obra maior.

No artigo Astro Boy and the Legacy of Osamu Tezuka, escrito por Zosia Swidlicka, é apontado que o dilema sobre a natureza humana, algo tão essencial para Neon Genesis Evangelion, já estava presente nos escritos de Tezuka desde 1952. “…Em Astro Boy humanos são tanto atraídos quanto repelidos por robôs. Dependem destes para sobreviver e ainda assim se ressentem deles por suas diferenças. Muito é levado em conta nos papéis atuais sobre a iminente chegada de robôs e I.A, vindo para “roubar nossos empregos” e desafiar a natureza humana”. 

Astro Boy foi o início de toda uma indústria

Uma menção rápida porém importante desse período são também os filmes tokusatsu (live actions que utilizam bastante efeitos especiais) do Godzilla, que são basicamente sobre monstros gigantes que ameaçam a sociedade japonesa e impelem os humanos a acharem um meio de lutar contra tal ameaça. Esse conceito se tornaria a premissa de Evangelion.

O segundo impacto no gênero sci-fi foi em 1988, com a estreia do longa animado Akira. Até então, as animações eram feitas de maneira bastante limitadas seja do ponto de vista técnico ou orçamentário. Sua produção, no entanto, foi considerada a mais cara feita até então com 1,1 bilhão de ienes justamente para bancar a construção de todo um novo mundo cyberpunk inédito (fora dos mangás). 

” A Besta Que Gritou ‘EU’ No Coração do Mundo”

Para tanto o diretor Katsuhiro Ôtomo utilizou 160.000 células de animação, uma opção que exigiu muito mais da equipe artística, que precisou preencher diferentes elementos de cada cena individualmente. A técnica foi necessária para conferir uma qualidade ímpar ao projeto. Nem mesmo o estúdio Ghibli, que havia sido fundado em 1985 e só havia produzido Castelo no céu, optava por esse estilo de animação, preferindo normalmente algo semi-animado.

Akira é um clássico verdadeiramente revolucionário

Esteticamente Akira se inspirou em diversas fontes ocidentais, sendo algumas delas audiovisuais ou não. A mais evidente não poderia ser outra senão Blade Runner de 1982, principalmente nos momentos que o espectador pode ter vislumbres da futurista Neo-Tokyo e constatar o abandono social caminhando lado a lado com o excesso de luzes neon em prédios gigantescos. Outra fonte de inspiração de Ôtomo para o visual de terra arrasada, mais tarde importante para o filme, conforme dito na matéria Akira: The Story Behind the Film de Andrew Osmond, foi o livro Guerra dos Mundos de H.G Wells.

O sucesso inevitável de Akira levou a uma revolução no modo de fazer animes, bem como no ocidente também. No artigo How Akira Changed the World of Animation Forever de Karla Clark é estabelecido que Akira teve papel importante em como se reavaliou o fazer animações. “Até seu lançamento, animações no ocidente eram vendidas em torno das crianças. Disney, Warner Bros e Hanna-Barbera, com suas tramas inocentes e animações simples, jamais haviam sonhado em atingir uma fanbase mais madura”.

“A quarta criança”

Ao chegar no ano de 1995, portanto, a indústria dos animes já havia se transformado, bem como toda a sociedade japonesa. O mercado de animes serializados, aqueles que são transmitidos em episódios, já havia se mostrado bastante lucrativo; em especial quando envolve propriedades do gênero shonen como Dragon Ball e Yu Yu Hakusho. Nos mangás não era muito diferente, visto que a saga de Goku criada por Akira Toriyama ia a toda vapor bem como, este reinando no gênero seinen, estava Berserk de Kentaro Miura.

Berserk: um épico sobre violência e a luta contra demônios internos (e externos)

Após dois impactos importantes, o gênero sci-fi se encontrava em uma posição de estagnação; sem possuir desde 1988 uma obra que verdadeiramente chacoalhava a indústria. Isso, obviamente, não significava que o gênero havia morrido. Ligado a ele, os animes de estilo mecha (robôs gigantes) viram sua popularidade ascender nos anos 80, não só pelo sucesso de obras com estilo tecnológico futurista mas por seu potencial inato para vender brinquedos voltados para crianças.

O exemplo mais bem sucedido do gênero até então havia sido a série Mobile Suit Gundam, transmitida desde 1979. Foi nesse cenário que o então jovem diretor Hideaki Anno, após se recuperar de um grave episódio de depressão, aceitou a proposta de desenvolver um novo projeto para o estúdio Gainax; uma vez que a relação de ambos já existia. 

Na matéria assinada por Ollie Barder para a Forbes intitulada ‘Evangelion’ Is A Great Anime But Not Without Its Influences And Hardly The First Of Its Kind é apontado que os animes mecha como um todo contribuíram para o processo criativo de Hideaki Anno. “As influências de animes mecha foram muito além e bastante complexas. Enquanto séries como Space Runaway Ideon (do mesmo criador de Gundam) foram uma influência aparente, é bastante claro que a maior parte dos trabalhos de Yoshiyuki Tomino desempenharam um papel na inspiração de Evangelion”.

O trio protagonista de Evangelion deve enfrentar monstros ameaçadores

A história então elaborada é a seguinte: em 2015 o mundo se encontra em um cenário de grande tensão. Isso porque quinze anos antes ocorreu um grande cataclismo ambiental conhecido como segundo impacto e que teve como consequência o total descontrole do clima e elevação do nível do mar. A história então segue o protagonista adolescente Shinji Ikari enquanto ele chega à cidade de Tóquio 3 após receber uma convocação de seu pai, uma figura a qual ele nunca foi próximo mas ocupa um lugar chave em uma agência secreta do governo japonês.

Chegando lá ele testemunha o confronto entre forças da ONU e de uma criatura de tamanho colossal e praticamente invencível frente às armas normais, chamada de anjo. Shinji descobre eventualmente que a única forma de derrotar esse e outros anjos é controlando por meio de ondas cerebrais um robô gigante apelidado de EVA e cuja numeração varia de acordo com o modelo. Episódio a episódio, Shinji vai conhecendo novos personagens, sendo alguns deles difíceis de se interagir (como o próprio pai e uma outra adolescente que possui um EVA chamada Asuka).

“Ele estava ciente de que ainda era uma criança”

O que fica claro desde a primeira interação de Shinji é que ele é um personagem bastante introspectivo com momentos crônicos de falta de autoconfiança e que de alguma forma é bastante afetado mentalmente (e tem esse quadro agravado) toda vez que pilota o EVA 01. Porém, o roteiro vai trabalhando em uma crescente com o personagem, lhe conferindo aos poucos mais confiança a medida que vai ganhando batalhas contra vários anjos…. e isso não dura para sempre.

A relação entre Shinji e o EVA 01 é extremamente destrutiva para o protagonista

A partir do episódio 16, intitulado “Doença até a Morte”, Shinji passa por sua primeira experiência existencial e o roteiro como um todo do anime assume uma direção totalmente inversa do que qualquer obra mecha da época havia oferecido. Um exemplo é que no próprio episódio mencionado Shinji é confrontado com a sensação do desespero de deixar de existir; tema esse abordado no livro The Sickness Unto Death, que também dá nome ao episódio, escrito pelo filósofo Sören Kierkegaard que compara o sentimento de desespero ao de pecar, assim como da distância que o indivíduo vai tomando de Deus e suas vontades.

No artigo científico Beyond 2015: Nihilism and Existentialist Rhetoric in Neon Genesis Evangelion por Gabriel F. Y. Tsang para estudos japoneses na Universidade de Tsukuba, é inferido que o protagonista Shinji, assim como todo o anime, trata unicamente sobre ansiedade. “Andrew Wells Garnar afirma que Neon Genesis Evangelion é inteiramente sobre ansiedade e explica que ‘o exemplo mais óbvio é a angústia de Shinji sobre suas relações com seu pai, sua mãe, as mulheres em sua vida, amigos e o EVA unidade 01”.

“O dilema do ouriço”

Conforme o anime caminha para sua conclusão, por volta do episódio 26, Shinji se distancia mais e mais dos outros personagens; em uma erupção do sentimento de medo sobre se abrir para outras pessoas ou até mesmo de viver, de modo que eventualmente isso possa levá-lo a se ferir. Essa questão, que por diversas vezes é levantada, recebe a denominação no próprio anime como “dilema do ouriço”. Esse muro construído por Shinji com a finalidade de protegê-lo de futuros ferimentos das relações sociais consequentemente cria um sentimento de alienação no próprio sobre seu papel na guerra contra os anjos.

Laços emocionais são extremamente difíceis de se cultivar em Evangelion. Principalmente para Shinji e Asuka

O trio Carl Li, Mari Nakamura e Martin Roth destrincham justamente a ideia de alienação presente durante o anime no artigo Japanese Science Fiction in Converging Media: Alienation and Neon Genesis Evangelion. “Analisando o anime Evangelion em termos dos cinco aspectos de alienação de Seeman (psicólogo social) nós descobrimos que Shinji tenta superar sua alienação ao participar da resistência coletiva humana contra os anjos alienígenas, ainda assim suas tentativas revelam contradições nos tipos de alienação”.

No decorrer do mesmo artigo, os autores levantam o fato de que as ações de Shinji ao se impor, pilotando o EVA 01, mais prejudicam sua busca pelo sentimento de individualidade do que lhe indicam uma solução. Os três modelos EVA, cada um pilotado por uma criança diferente, acabam se mostrando então como ferramentas muito mais destrutivas do que construtivas. Um outro exemplo é a personagem Asuka que comanda o EVA 02 e, devido a traumas de infância como o relacionamento com a mãe, acaba concentrando em seu trabalho como piloto toda a frustração e, mais importante, busca por aprovação externa que ela jamais recebeu. Já no caso da terceira criança, Rei Ayanami, é evidente a troca de motivações psicológicas reais por uma mais etérea e ficcional. A criação desse personagem em específico a torna mais distante de uma abordagem psicológica real como no caso de Shinji e Asuka.

Assim como o restante do elenco, Asuka sofre internamente com seus próprios traumas

Ao chegar em seus dois últimos episódios, o anime, sofrendo com falta de verba evidente, apelou para um estilo inusitado de animação e que se utilizou de narrativa não linear e abstrata. Com isso, o estúdio Gainax sofreu com diversas reclamações e até ameaça a seus funcionários. Em 1997 um novo final seria proposto no longa animado The End of Evangelion, este com um formato narrativo e visual mais tradicional. Atualmente, o anime passa por uma reimaginação com os filmes da série Rebuild, que não necessariamente muda a história, mas reorganiza alguns elementos.

Passados 25 anos de seu lançamento, Neon Genesis Evangelion ainda é cultuado como um produto que ousou em um mercado bastante inflexível como o da indústria de animes. Sua estética inspirou muitos dos animes do gênero mecha que vieram depois e suas abordagens psico-filosóficas para com seus personagens ainda são revisitadas constantemente. Se Astro Boy mostrou nos anos 60 o potencial dos animes e Akira chacoalhou a indústria da animação ocidental e oriental com seu futuro cyberpunk, Evangelion expôs com seu polêmico final que não só a indústria a que ele pertence é inflexível, mas (e isso é ainda mais complicado) seu público consumidor também é.

 

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* Texto contém leves spoilers do episódio 16 e do final do anime

“Ataque do Anjo”

Por volta do ano de 1995, uma história sobre robôs gigantes pilotados por adolescentes e que combatem monstros gravaria seu nome na história. Combinando ação exagerada com a discussão sobre temas como espiritualidade e instabilidade emocional, Neon Genesis Evangelion soube como dar sequência ao longo legado de produções sci-fi anteriores, bem como levá-las a um novo nível. 

A indústria de animações japonesas é bastante variada em questão de tipo de produção e como determinada produção flui entre eles. Alguns exemplos são os gêneros de slice of life (cotidiano, geralmente passado no ambiente escolar), seinen (histórias de cunho mais adulto e com maior grau de violência), shonen (voltados para o público infanto-juvenil e com histórias focadas em lutas) e sci-fi

Este último talvez seja o que mais se inspirou e se inspira em produções ocidentais, seja na questão de uma estética futurista ou de elaboração de enredos. O gênero também é bastante creditado por ter sido um dos primeiros a empurrar a cultura pop japonesa de uma fase “imatura” para uma “consolidada”. Para tanto é interessante neste texto, para fins didáticos, dividi-lo em três períodos. 

Lançado em 1990, o mangá “Battle Angel Alita” é uma peça importante do gênero Sci-Fi

O primeiro deles foi a estreia do anime Astro Boy em 1963, baseado no mangá homônimo de 1952 escrito por Osamu Tezuka. A modernização do conto do Pinóquio, conforme definido pelo tradutor para a versão em inglês Frederik Schodt, foi a primeira vez que traços impressos em um mangá ganharam movimentos em uma animação, bem como a estreia de uma animação japonesa no mercado americano. A visão que Tezuka demonstrava para o futuro, um misto de animação com o potencial tecnológico e pessimismo, também foi exposta por ele em sua obra maior.

No artigo Astro Boy and the Legacy of Osamu Tezuka, escrito por Zosia Swidlicka, é apontado que o dilema sobre a natureza humana, algo tão essencial para Neon Genesis Evangelion, já estava presente nos escritos de Tezuka desde 1952. “…Em Astro Boy humanos são tanto atraídos quanto repelidos por robôs. Dependem destes para sobreviver e ainda assim se ressentem deles por suas diferenças. Muito é levado em conta nos papéis atuais sobre a iminente chegada de robôs e I.A, vindo para “roubar nossos empregos” e desafiar a natureza humana”. 

Astro Boy foi o início de toda uma indústria

Uma menção rápida porém importante desse período são também os filmes tokusatsu (live actions que utilizam bastante efeitos especiais) do Godzilla, que são basicamente sobre monstros gigantes que ameaçam a sociedade japonesa e impelem os humanos a acharem um meio de lutar contra tal ameaça. Esse conceito se tornaria a premissa de Evangelion.

O segundo impacto no gênero sci-fi foi em 1988, com a estreia do longa animado Akira. Até então, as animações eram feitas de maneira bastante limitadas seja do ponto de vista técnico ou orçamentário. Sua produção, no entanto, foi considerada a mais cara feita até então com 1,1 bilhão de ienes justamente para bancar a construção de todo um novo mundo cyberpunk inédito (fora dos mangás). 

” A Besta Que Gritou ‘EU’ No Coração do Mundo”

Para tanto o diretor Katsuhiro Ôtomo utilizou 160.000 células de animação, uma opção que exigiu muito mais da equipe artística, que precisou preencher diferentes elementos de cada cena individualmente. A técnica foi necessária para conferir uma qualidade ímpar ao projeto. Nem mesmo o estúdio Ghibli, que havia sido fundado em 1985 e só havia produzido Castelo no céu, optava por esse estilo de animação, preferindo normalmente algo semi-animado.

Akira é um clássico verdadeiramente revolucionário

Esteticamente Akira se inspirou em diversas fontes ocidentais, sendo algumas delas audiovisuais ou não. A mais evidente não poderia ser outra senão Blade Runner de 1982, principalmente nos momentos que o espectador pode ter vislumbres da futurista Neo-Tokyo e constatar o abandono social caminhando lado a lado com o excesso de luzes neon em prédios gigantescos. Outra fonte de inspiração de Ôtomo para o visual de terra arrasada, mais tarde importante para o filme, conforme dito na matéria Akira: The Story Behind the Film de Andrew Osmond, foi o livro Guerra dos Mundos de H.G Wells.

O sucesso inevitável de Akira levou a uma revolução no modo de fazer animes, bem como no ocidente também. No artigo How Akira Changed the World of Animation Forever de Karla Clark é estabelecido que Akira teve papel importante em como se reavaliou o fazer animações. “Até seu lançamento, animações no ocidente eram vendidas em torno das crianças. Disney, Warner Bros e Hanna-Barbera, com suas tramas inocentes e animações simples, jamais haviam sonhado em atingir uma fanbase mais madura”.

“A quarta criança”

Ao chegar no ano de 1995, portanto, a indústria dos animes já havia se transformado, bem como toda a sociedade japonesa. O mercado de animes serializados, aqueles que são transmitidos em episódios, já havia se mostrado bastante lucrativo; em especial quando envolve propriedades do gênero shonen como Dragon Ball e Yu Yu Hakusho. Nos mangás não era muito diferente, visto que a saga de Goku criada por Akira Toriyama ia a toda vapor bem como, este reinando no gênero seinen, estava Berserk de Kentaro Miura.

Berserk: um épico sobre violência e a luta contra demônios internos (e externos)

Após dois impactos importantes, o gênero sci-fi se encontrava em uma posição de estagnação; sem possuir desde 1988 uma obra que verdadeiramente chacoalhava a indústria. Isso, obviamente, não significava que o gênero havia morrido. Ligado a ele, os animes de estilo mecha (robôs gigantes) viram sua popularidade ascender nos anos 80, não só pelo sucesso de obras com estilo tecnológico futurista mas por seu potencial inato para vender brinquedos voltados para crianças.

O exemplo mais bem sucedido do gênero até então havia sido a série Mobile Suit Gundam, transmitida desde 1979. Foi nesse cenário que o então jovem diretor Hideaki Anno, após se recuperar de um grave episódio de depressão, aceitou a proposta de desenvolver um novo projeto para o estúdio Gainax; uma vez que a relação de ambos já existia. 

Na matéria assinada por Ollie Barder para a Forbes intitulada ‘Evangelion’ Is A Great Anime But Not Without Its Influences And Hardly The First Of Its Kind é apontado que os animes mecha como um todo contribuíram para o processo criativo de Hideaki Anno. “As influências de animes mecha foram muito além e bastante complexas. Enquanto séries como Space Runaway Ideon (do mesmo criador de Gundam) foram uma influência aparente, é bastante claro que a maior parte dos trabalhos de Yoshiyuki Tomino desempenharam um papel na inspiração de Evangelion”.

O trio protagonista de Evangelion deve enfrentar monstros ameaçadores

A história então elaborada é a seguinte: em 2015 o mundo se encontra em um cenário de grande tensão. Isso porque quinze anos antes ocorreu um grande cataclismo ambiental conhecido como segundo impacto e que teve como consequência o total descontrole do clima e elevação do nível do mar. A história então segue o protagonista adolescente Shinji Ikari enquanto ele chega à cidade de Tóquio 3 após receber uma convocação de seu pai, uma figura a qual ele nunca foi próximo mas ocupa um lugar chave em uma agência secreta do governo japonês.

Chegando lá ele testemunha o confronto entre forças da ONU e de uma criatura de tamanho colossal e praticamente invencível frente às armas normais, chamada de anjo. Shinji descobre eventualmente que a única forma de derrotar esse e outros anjos é controlando por meio de ondas cerebrais um robô gigante apelidado de EVA e cuja numeração varia de acordo com o modelo. Episódio a episódio, Shinji vai conhecendo novos personagens, sendo alguns deles difíceis de se interagir (como o próprio pai e uma outra adolescente que possui um EVA chamada Asuka).

“Ele estava ciente de que ainda era uma criança”

O que fica claro desde a primeira interação de Shinji é que ele é um personagem bastante introspectivo com momentos crônicos de falta de autoconfiança e que de alguma forma é bastante afetado mentalmente (e tem esse quadro agravado) toda vez que pilota o EVA 01. Porém, o roteiro vai trabalhando em uma crescente com o personagem, lhe conferindo aos poucos mais confiança a medida que vai ganhando batalhas contra vários anjos…. e isso não dura para sempre.

A relação entre Shinji e o EVA 01 é extremamente destrutiva para o protagonista

A partir do episódio 16, intitulado “Doença até a Morte”, Shinji passa por sua primeira experiência existencial e o roteiro como um todo do anime assume uma direção totalmente inversa do que qualquer obra mecha da época havia oferecido. Um exemplo é que no próprio episódio mencionado Shinji é confrontado com a sensação do desespero de deixar de existir; tema esse abordado no livro The Sickness Unto Death, que também dá nome ao episódio, escrito pelo filósofo Sören Kierkegaard que compara o sentimento de desespero ao de pecar, assim como da distância que o indivíduo vai tomando de Deus e suas vontades.

No artigo científico Beyond 2015: Nihilism and Existentialist Rhetoric in Neon Genesis Evangelion por Gabriel F. Y. Tsang para estudos japoneses na Universidade de Tsukuba, é inferido que o protagonista Shinji, assim como todo o anime, trata unicamente sobre ansiedade. “Andrew Wells Garnar afirma que Neon Genesis Evangelion é inteiramente sobre ansiedade e explica que ‘o exemplo mais óbvio é a angústia de Shinji sobre suas relações com seu pai, sua mãe, as mulheres em sua vida, amigos e o EVA unidade 01”.

“O dilema do ouriço”

Conforme o anime caminha para sua conclusão, por volta do episódio 26, Shinji se distancia mais e mais dos outros personagens; em uma erupção do sentimento de medo sobre se abrir para outras pessoas ou até mesmo de viver, de modo que eventualmente isso possa levá-lo a se ferir. Essa questão, que por diversas vezes é levantada, recebe a denominação no próprio anime como “dilema do ouriço”. Esse muro construído por Shinji com a finalidade de protegê-lo de futuros ferimentos das relações sociais consequentemente cria um sentimento de alienação no próprio sobre seu papel na guerra contra os anjos.

Laços emocionais são extremamente difíceis de se cultivar em Evangelion. Principalmente para Shinji e Asuka

O trio Carl Li, Mari Nakamura e Martin Roth destrincham justamente a ideia de alienação presente durante o anime no artigo Japanese Science Fiction in Converging Media: Alienation and Neon Genesis Evangelion. “Analisando o anime Evangelion em termos dos cinco aspectos de alienação de Seeman (psicólogo social) nós descobrimos que Shinji tenta superar sua alienação ao participar da resistência coletiva humana contra os anjos alienígenas, ainda assim suas tentativas revelam contradições nos tipos de alienação”.

No decorrer do mesmo artigo, os autores levantam o fato de que as ações de Shinji ao se impor, pilotando o EVA 01, mais prejudicam sua busca pelo sentimento de individualidade do que lhe indicam uma solução. Os três modelos EVA, cada um pilotado por uma criança diferente, acabam se mostrando então como ferramentas muito mais destrutivas do que construtivas. Um outro exemplo é a personagem Asuka que comanda o EVA 02 e, devido a traumas de infância como o relacionamento com a mãe, acaba concentrando em seu trabalho como piloto toda a frustração e, mais importante, busca por aprovação externa que ela jamais recebeu. Já no caso da terceira criança, Rei Ayanami, é evidente a troca de motivações psicológicas reais por uma mais etérea e ficcional. A criação desse personagem em específico a torna mais distante de uma abordagem psicológica real como no caso de Shinji e Asuka.

Assim como o restante do elenco, Asuka sofre internamente com seus próprios traumas

Ao chegar em seus dois últimos episódios, o anime, sofrendo com falta de verba evidente, apelou para um estilo inusitado de animação e que se utilizou de narrativa não linear e abstrata. Com isso, o estúdio Gainax sofreu com diversas reclamações e até ameaça a seus funcionários. Em 1997 um novo final seria proposto no longa animado The End of Evangelion, este com um formato narrativo e visual mais tradicional. Atualmente, o anime passa por uma reimaginação com os filmes da série Rebuild, que não necessariamente muda a história, mas reorganiza alguns elementos.

Passados 25 anos de seu lançamento, Neon Genesis Evangelion ainda é cultuado como um produto que ousou em um mercado bastante inflexível como o da indústria de animes. Sua estética inspirou muitos dos animes do gênero mecha que vieram depois e suas abordagens psico-filosóficas para com seus personagens ainda são revisitadas constantemente. Se Astro Boy mostrou nos anos 60 o potencial dos animes e Akira chacoalhou a indústria da animação ocidental e oriental com seu futuro cyberpunk, Evangelion expôs com seu polêmico final que não só a indústria a que ele pertence é inflexível, mas (e isso é ainda mais complicado) seu público consumidor também é.

 

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