Vitórias de Chloé Zhao no Globo de Ouro e Critics’ Choice Awards foram um sopro de alívio mas também chamam a atenção para disparidade gritante
Após vencer o Globo de Ouro de melhor diretor(a) na cerimônia do último dia 29 por seu trabalho em Nomadland, a cineasta Chloé Zhao quebrou um tabu muito importante: ela foi a segunda mulher em toda a história a ganhar o prêmio, a primeira sendo Barbra Streisand em 1984 com Yentl, além de ser a primeira asiática a ter sido laureada como melhor diretora no evento. Mesmo com tamanha vitória, porém, a disparidade no histórico de cineastas premiados é visível.
O crédito de primeira mulher como diretora de um filme é constantemente atribuído à francesa Alice Guy-Blaché. O início da sua carreira remonta ao final do século XIX, mais precisamente 1896, com a obra La fée aux choux (em uma tradução livre A Fada do Repolho, o primeiro filme a ter sido escrito e dirigido por uma mulher ) mas até a primeira metade do século XX ela já tinha estado à frente de pelo menos trezentos projetos, seja comandando direta ou indiretamente.
À ela também é creditado os primeiros trabalhos na sincronização de áudio e imagem no cinema, mais especificamente com criação do chronophone. No artigo Imagining Sound in the Solax Films of Alice Guy-Blaché: “Canned Harmony” (1912) and “Burstop Holmes Murder Case” (1913), a autora Barbara McBane expõe uma fala de Guy Blaché em que a cineasta descreve o dispositivo.
“Guy Blaché descreve o chronophone, um sistema primário de som sincronizado como ‘o primeiro filme falado, uma invenção francesa’. Essa foi, ela disse: não a imagem falada que você conhece. A voz do artista (cantor ou orador), ou a música para a dança eram gravadas no estúdio. Os atores então reencenam seus papéis até obterem uma sincronização perfeita com a gravação fonográfica. Logo, a gravação cinematográfica foi feita.”
É importante também mencionar que ela foi a primeira mulher a ter um estúdio próprio. A Solax Company foi fundada em 1910 e entre esse ano e 1913 o estúdio produziu mais de cem obras que estavam sob total controle de Guy-Blaché. No entanto, seu fim veio por volta de 1914 como uma consequência dos impactos econômicos diretos da Primeira Guerra Mundial.
Nesse mesmo período, a partir do início de 1911, os Estados Unidos tiveram o surgimento da primeira grande cineasta da sua história. Lois Weber marcou seu nome ainda no período do cinema mudo como uma profissional multifacetada; constantemente em seus projetos ela assumia o posto de atriz, roteirista, produtora e diretora. Da mesma forma que Guy-Blaché, ela dirigiu uma quantidade respeitável de filmes, Weber teve em sua contagem pelo menos mais de cem obras.
Além disso, ela foi pioneira na elaboração da técnica de split screen (divisão de tela) ainda em 1913 com o filme Suspense, obra que aborda diferentes pontos de vistas de personagens de maneira quase simultânea. Essa ferramenta, que se tornaria bastante utilizada nos filmes da segunda metade do século XX e em matérias jornalísticas durante um acontecimento ao vivo, alçaram Lois Weber a constantes comparações com outro grande nome do cinema americano da época, D.W. Griffith, sem o adicional de ter uma obra extremamente problemática em sua filmografia (sim, é Nascimento de uma Nação).
Sobre a cineasta, Richard Henshaw escreveu no artigo WOMEN DIRECTORS: 150 FILMOGRAPHIES sobre a importância de ressaltar a carreira de Lois Weber. “Desse grupo de primeiros diretores, alguns são dignos de nota. De longe a mais prolífica foi Lois Weber, que começou como atriz de comédias musicais e escritora. Ela se destacou por ter tido seu próprio estúdio, alugado para ela pela Universal em 1916. Lois Weber Productions empregou dezenas de roteiristas, técnicos e pessoal de escritório, além de permitir Weber a produzir e dirigir seus próprios roteiros em ritmo constante”.
Todavia, a geração de diretoras da primeira metade do século XX também contém um nome problemático mas que teve seu quinhão de importância nas inovações técnicas; Leni Riefenstahl basicamente criou o conceito moderno de como conduzir um documentário e entregou a esse gênero um reconhecimento que ele não possuía nos anos 30. Ao mesmo tempo, essas conquistas concederam a ela o título de cineasta mais importante do Reich Nazista.
Propaganda era uma arma essencial na manutenção do poder junto às massas e para isso seria necessário que o cinema alemão carregasse a vanguarda de um novo tipo de propaganda política. A Alemanha já tinha seu quinhão de importância solidificado no cinema por ter gerado um dos primeiros grandes movimentos cinematográficos europeu: O Expressionismo Alemão. Com o apoio do governo, Riefenstahl entregou produções como Triunfo da Vontade e Olympia; o primeiro focado em mostrar o quão sobrenatural era a liderança de Hitler e o segundo mais voltado para uma suposta superioridade germânica nas olimpíadas de verão de 1936.
Ashley Bunnell Ritchie, no artigo The Many Leni Riefenstahls: Inventing a Cinematic Legend, cita o historiador do cinema, Rainer Rother, para explicar que estilo de filmagem a cineasta adotou para ter atraído a atenção dos maiores nomes do regime nazista durante a produção do documentário Trinfo da Vontade.
“De acordo com o autor Rainer Rother, o ideal estilístico de Riefenstahl foi notável em dois sentidos: por um lado ela empregou cortes em filmes narrativos em uma tentativa de colocar a audiência na posição de ‘espectador ideal’. Por outro lado, Riefenstahl fez o necessário para heroicizar o principal sujeito de seu filme… Ela posicionou a câmera de tal maneira que parecia estar dentro da cabeça de Hitler enquanto ele descia das nuvens para o comício de Nuremberg. A audiência viu através dos olhos de Hitler enquanto ele descia para perto do povo… Ela abordou a câmera de maneiras que ninguém mais fez e ela sabia como manipular isso em ordem de criar qualquer sentimento que ela queria em tela. ”
Eventualmente, principalmente após virada para a segunda metade do século XX, o número de mulheres cineastas diminui drasticamente na Europa e, mais alarmante ainda, nos Estados Unidos. Até a década de 60 as mulheres foram sendo explícita ou implicitamente desencorajadas a desenvolver novos projetos em prol de ficarem apenas como atrizes.
No entanto, é justo ressaltar que as cineastas do período ainda assim encontraram formas de se expressar por meio dos novos movimentos cinematográficos que foram surgindo. Por exemplo, a Nouvelle Vague francesa proporcionou um palco para Agnès Varda e Marguerite Duras. O Novo Cinema Alemão popularizou os trabalhos de Margarethe von Trotta e Helma Sanders-Brahms
Outro elemento de dificuldade levantado, dessa vez pela Deborah Calla na matéria Why are women directors ‘excluded’ from cinema history? de autoria da Ana Maria Bahiana, foi que se uma cineasta buscasse financiamento para um projeto ela dificilmente conseguiria novamente para um segundo e nem muito menos para um terceiro, tornando assim bem difícil construir uma filmografia ampla.
Com o passar do século XX Hollywood continuou a ser uma indústria essencialmente conduzida por cineastas homens; mesmo que, na década de 70, o circuito de filmes de baixo orçamento tenha apresentado novos nomes como Joan Micklin Silver (seu filme Between the Lines conquistou duas das três indicações do Festival Internacional de Berlim em 1977). Foi com a chegada dos anos 2000 que surgiu uma nova variedade de filmes comandados por diretoras.
O portal Statista fez uma levantamento da porcentagem de realizadoras que surgiram em Hollywood entre 2007 e 2019. É apontado que a alta histórica no período analisado foi em 2019, quando 10.6% dos cineastas eram compostos por mulheres, mas antes disso, em 2008 mais especificamente, houve uma porcentagem de participação com 8% de presença de diretoras.
É interessante notar que nesse ano foi lançado Guerra ao Terror, um drama sobre um esquadrão de desarmamento de bombas do exército americano no Iraque. O filme, dirigido por Kathryn Bigelow, recebeu aclamação universal, um Oscar de melhor filme e o primeiro (e até o momento único) de melhor direção concedido a uma mulher. Bem antes disso, por exemplo, a Sofia Coppola já escrevia seu nome desde os anos 90 (primeiro com Virgens Suicidas mas em 2006 também com Maria Antonieta).
É a partir dos anos 2010 que uma nova safra de cineastas começa a realmente aparecer: Ava DuVernay (com os poderosos Selma e Olhos que Condenam), Lorene Scafaria (Hustlers protagonizado por Jennifer Lopez), Patty Jenkins (a primeira a dirigir um grande filme de super-heróis com Mulher Maravilha e atualmente a diretora mais cara de Hollywood), Greta Gerwig (por muito pouco não vencendo o Oscar de Melhor Direção com Lady Bird em 2018) e muitas outras.
Por fim, ao passo que as mulheres vão recuperando sua posição no comando de produções maiores é essencial lembrar que algumas das maiores inovações que essa indústria viu foram realizadas por pioneiras. A vitória da Chloé Zhao no Globo de Ouro, além de uma possível indicação no Oscar, pode ser um novo capítulo importante de uma história que aos poucos está sendo retomada.