NÃO EXISTE AMOR EM WESTEROS
Nada como um nono ep. para espantar a lembrança da primeira parte desta temporada. Vamos ao essencial: Shireen Baratheon (Kerry Ingram) e Daenerys (Emilia Clarke). O resto é coadjuvante, rsrs!
A morte de Shireen gerou comoção. Foi algo totalmente inesperada, inclusive para quem lê os livros. Exceto por um diálogo entre Melisandre (Carice van Houten) e Stannis (Stephen Dillane), em ep. anterior, não havia muitas pistas sobre o destino de Shireen. Também pesou ela ser uma das poucas figuras puras de Game Of Thrones – GoT. Sua morte foi como retirar dos espectadores um instante de respiro. Em pouquíssimas cenas, os roteiristas pavimentaram o caminho para sua morte, com um sadismo de fazer inveja ao Casamento Vermelho. Que fique claro, isto é um elogio!
A sordidez da coisa começou com o comovente diálogo entre Shireen e Davos (Liam Cunningham); sentia-se que algo não acabaria bem. A crueldade foi tanta, que a menina prometera contar a história do livro A Dança dos Dragões para Davos quando ele retornasse. Já a conversa entre Stannis e sua filha deixou bem clara que viria coisa ruim. Este diálogo foi um dos mais bem construídos da temporada: reforçou a crueldade da morte de Shireen, colocou em questão o fanatismo religioso e deixou claro que Stannis é um personagem trágico.
A postura de Stannis entrando na barraca já demonstrava a dor da sua decisão. A forma como descrevia a história do livro e sua alegria em ajudar o pai reiteravam a doçura de Shireen. As palavras de Stannis serviram tanto para preparar o espectador para o ato seguinte, quanto para aliviar sua barra, mostrando o fatalismo e a impossibilidade de fugir daquela decisão.
Sempre defendi que Stannis era uma figura trágica. Em uma tragédia clássica, o protagonista desconhece certos fatos que fazem com que ele tome uma decisão erra. O ciclo se completa quando ele percebe a burrada que fez. Stannis vê seu destino como algo imposto por uma força superir, e que certas decisões são inevitáveis. Mesmo sua luta pelo trono não seria por simples ambição, mas por designo.
Acontece que, ao contrário de peças gregas nas quais os Deus eram personificados, em GoT não temos nenhuma certeza de qual religião é a verdadeira. Ao que tudo indica, Melisandre está erra em suas previsões. E aqui está a ignorância de Stannis: seu fanatismo não permite ver o erro que cometeu; mandar a filha para fogueira não foi fruto de sadismo, mas de um julgamento errado. Seguindo o script clássico, é provável que ele, em algum ponto da série, perceba o erro, veja que ele é o único culpado por suas ações e sofra as consequências.
Essa dimensão trágica impede que Stannis torne-se vilão. Isso fica mais claro ainda no momento em que temos certeza do fim de Shireen. Quando o altar do sacrifício é mostrado, no mesmo plano, vemos Melisandre, o suficiente para transmitirmos para ela nosso ódio.
A morte de Shireen gerou polêmica, especialmente nos Estados Unidos. Muitos disseram que a série havia ido longe demais, e que os roteiristas foram apelativos. Também pesou o fato da morte de Shireen não constar dos livros. Quanto a isto, o criador da série, David Benioff, disse que a ideia foi do titio Martin. E mesmo que não fosse, em uma adaptação mudanças são necessárias e bem vindas.
Uma parte do público – que julgo ser minoritária – leu o episódio pela lente do neomoralismo politicamente correto. Sinceramente, às vezes acho que essas pessoas realmente acreditam que com seus discursos o mundo alcançará um paraíso cor fúcsia, e que os seres humanos se tornarão Ursinhos Carinhosos. E para isso, o melhor caminho seria submeter a arte a uma pauta que lhes seja conveniente. Provavelmente, são as mesmas pessoas que criticam a cultura de estupro em Westeros – tema que merece outro texto – esquecendo todo o contexto da série. Enfim, falta leitura clássica para esses patrulheiros.
Também tem o grupo dos fanboys, que reclamam de qualquer vírgula que fuja da fonte. Mesmo parecendo um caso perdido, tenho uma simpatia maior por eles, que ao menos entende da lógica da ficção. Enfim, eles têm um problema de tara, não de falta de leitura.
Nessa confusão toda, quem me interessa mesmo é a maioria dos espectadores: pessoas que sentiram a dor da cena, pouco importa se depois falaram mal na internet ou se apenas ficaram calados diante da TV. São reações previsíveis quando falamos de dramas – e tão antigas quanto as peças gregas ou os grupos de discussões de donas de casa sobre as novelas da Globo.
A lógica é mais ou menos a mesma. Tudo começa em saber se o público compra ou não o drama. Se não gostar, vão dizer que a história é apelativa e que só mostra maldade. Se o público gostar, o apelativo passa a ser justificado pela lógica da narrativa. Não é sadismo do público, mas apenas a lógica do drama clássico funcionando. O público aceita os maiores sofrimentos impostos aos personagens, desde que, no final, haja a catarse. Se não fosse isso, o público sumiria! Ao roteirista cabe testar o quanto de maldades o espectador aguenta. Seus dotes artísticos serão comprovados se conseguir o resultado desejado. Como na televisão o objetivo é manter a audiência, o roteirista será talentoso se conseguir desafiar os limites sem perder público.
Quando em GoT, mata-se na fogueira uma menina inocente, a moral e o bom gosto do público são desafiados, daí as fortes reações entre os fãs. Ele só não sai em debandada porque, no fundo, sabe que haverá alguma compensação ao final – seja a vitória ou, o mais provável, a punição de quem fez o mal. Agora, se o roteirista errar na mão, o espectador vai embora (ou nem entra na festa) e começa a fazer um discurso moralista, acusando a obra de apelativa – o que também não me assusta; no fundo, é uma tentativa da pessoa deixar claro para si que não concorda com a vilania. A ficção, com sua promessa de catarse, permite que a gente encare o nosso lado mais escuro. O que os politicamente corretos e falsos moralistas não entendem, é que o grotesco nas artes é a terapia que nos transforma em pessoas melhores.
Claro que os limites do público variam de acordo com a época e de um grupo para outro, mas a lógica se mantem. E observar que esse espectador continua pedindo pizza e ligando a TV aos domingos, permite ver que a equipe de GoT, mesmo em sua temporada mais fraca, ainda sabe fazer o dever de casa.
O nono ep. foi tão bem feito, que o desfecho compensou o público pelo sofrimento da morte de Shireen. Foi uma bela sequência, com bons diálogos, surpresas, ironias, lutas, a reconciliação entre Daenerys e Jorah (Iain Glen) e fim épico com o voo de Khaleesi no lombo de Drogon. Foi a forma que os roteiristas encontraram de mostrar ao público que ainda se pode encontrar amor em Westeros.