Com filmes explorando novas nuances do gênero é importante lembrar que as HQ tiveram seu período áureo no estilo
Nem sempre a indústria das histórias em quadrinhos foi populada por super-heróis e, para todos os efeitos, dividida entre duas marcas que se elevam sobre as demais. O fenômeno dos super-heróis ocorreu relativamente mais tarde e se consolidou sob circunstâncias muito específicas, entretanto até mesmo sua origem nunca foi considerada para ser o que eles se tornaram.
A fonte de inspiração para Batman, primeira aparição sendo na Detective Comics #27 de 1939, foi pretendida para ser mais uma história pulp, tendo na figura do novo personagem uma continuação do arquétipo do detetive antissocial inserido em uma cidade violenta misturada à extravagância estética do clássico Zorro.
Superman, em 1938, funcionava como uma metáfora de como o cidadão comum via seu país (ainda se recuperando da grande depressão) e, principalmente, quem ele considerava culpado ou tendo grande participação em sua tragédia: os políticos e personalidades corruptas. Tudo isso envolto por uma vestimenta inspirada nos performistas de circos, cujo auge terminou nos anos 20 e a queda veio nos anos 30 com o aumento do custo para se manter o espetáculo.
A questão é que em sua fase embrionária os super-heróis vieram como uma representação de seu tempo e não uma realidade fictícia, concebida completamente à parte da realidade e alheia ao que ocorria; o mesmo pode ser dito das histórias de terror.
Sua origem, como muitas outras histórias, pode ser traçada até o fenómeno das pulp magazines do início do século XX, este sendo um gênero que fomentava um exercício constante dos autores e ilustradores de utilizar-se de visuais mais gráficos e um texto maduro demais para as crianças, vulgo público-alvo.
A primeira série do tipo é creditada à linha Dime Mystery Magazine, lançada pela Popular Publications, para competir diretamente no gênero pulp. A própria editora era uma presença constante nesse segmento, variando sua área de atuação desde histórias de detetive até westerns. No entanto, a proposta original da revista era ser um complemento às tramas de mistério apresentadas em Dime Detective, justamente por esse ser o gênero mais procurado pelo público.
Os números de venda não vingaram devido ao alto nível da concorrência (com eles tendo o escritor Edgar Wallace em sua equipe) e uma nova estratégia precisou ser pensada, a revista então se afastou mais do lado investigativo para abraçar o horror. No que foi sua duração entre os anos 30 e os anos 50, Dime Mystery Magazine estabeleceu um dos primeiros subgêneros do terror: o Weird Manace (uma ameaça que se apresenta como sobrenatural porém se revela como sendo apenas humana).
Ainda assim, o modelo apresentado pela Popular Publications era muito mais próximo do estilo das antigas penny dreadful do que dos quadrinhos tradicionais. O texto era escrito em parágrafos e dividido por capítulos, com poucas gravuras apresentadas no seu decorrer, tendo assim um cunho literário puxado para o textual do que para o visual (com exceção das capas, que mantinham a tradição de serem bastante chamativas).
Ao final de 1947, uma troca de comando ocorreu em outra editora, dessa vez sendo a EC Comics. A empresa que começou como um veículo para a publicação de histórias infantis de cunho bíblico mudou de posicionamento após William Gaines, filho de seu fundador, perceber que havia um mercado consumidor adulto para aquele tipo de mídia; muitos deles sendo veteranos da Segunda Guerra que recebiam exemplares avulsos para ler entre os combates.
No artigo This is Why WWII Troops Are to Thank for the Rise of Comics é apontado que o aumento da venda de quadrinhos veio de um público distante do esperado. “Vendas subiram para milhões, mas não por causa de crianças com centavos sobrando. A audiência que comprou em massa foi, surpreendentemente, a faixa demográfica que queria socar Hitler por si próprio: os rapazes de 24 anos que estavam embarcando para a guerra”.
Por volta de 1948 as vendas de quadrinhos apresentavam um saldo positivo, com vendas que ultrapassaram 80 a 100 milhões de cópias mensais e gerando um retorno total de US$ 72 milhões. Tais números atraíram a atenção da EC Comics para o terreno das tramas adultas.
A partir da década seguinte a editora se solidificou no campo do horror ao estabelecer séries de sucesso tais como The Vault of Horror, Weird Fantasy e seu grande sucesso Tales from the Crypt; esta última definindo indiretamente como as histórias de terror nos quadrinhos deveriam ser conduzidas e escritas, principalmente oferecendo a icônica presença do constante Guardião da Cripta, um narrador que tece comentários de humor negro para suavizar as narrativas e que se tornou marca da série.
Por meio do artigo científico Sometimes the Darkness Can Show you the Light: Horror Comics and their Contributions to the Genre, o autor Taylor Bielecki disseca a importância técnica do personagem: “O Guardião da Cripta, apesar de não ser alinhado com os protagonistas ou antagonistas de um conto padrão de horror, é uma parte essencial desses quadrinhos. Como narrador, ele executa uma parte integral na moderação de emoções do leitor e expectativas com o quadrinho.”
Muito do que formou o sucesso das histórias de terror no período eram o equilíbrio de alguns fatores, sendo eles as ilustrações explicitas, o humor negro para quebrar a tensão contínua e o forte senso de pertencimento à época que eles foram escritos. Tal como mencionado anteriormente, sobre Superman e Batman em seus períodos iniciais, os quadrinhos de terror sobre tudo tinham plena noção dos temas que perturbavam seus leitores adultos.
Tal como exposto no vídeo The Golden Age of Horror Comics Part 1, do canal in Praise of Shadows, não era raro essas histórias exporem ansiedades de acometiam a parcela masculina e caucasiana dos leitores, ainda mais nos anos 50.
O medo de seu papel predominante no núcleo familiar ser subvertido (uma vez que no período da Segunda Guerra a força de trabalho braçal se tornou majoritariamente feminina para compensar a convocação dos homens para o conflito) abria margem para o surgimento de antagonistas femininas representando forças malignas no terror ou incorporando as femme fatales das histórias de detetive. A noção racista sobre povos estrangeiros por muitas vezes abria caminhos para a publicação de obras envolvendo a ameaça canibal de alguma tribo africana.
Não à toa um dos maiores símbolos de tais situações pontuais é Hate, lançada em 1952 na Shock SuspenStories #5, publicada pela EC Comics. Na trama, uma família judia se muda para um novo lar localizado no subúrbio; sua vinda não é bem aceita por um dos vizinhos que logo começa a instigar outros a ameaçarem a família de maneira gradual até que eles vão embora. Quando os recém-chegados permanecem, o vizinho eleva o nível da situação para o ponto em que uma tragédia ocorre.
Apesar do tema pesado, essa foi uma história que não tratou de maneira branda o preconceito existente nos subúrbios, pelo contrário, os autores tratam o terror presente aqui como algo real e, consequentemente, mais chocante do que um zumbi canibal que se levanta do túmulo.
Até o seu momento crepuscular, que basicamente ocorreu quando o controle de conteúdo de quadrinhos foi imposto pela própria indústria na mesma época, as HQs de terror muitas vezes serviam de espelho para muitos tabus do período que, em outras situações, não seriam discutidos abertamente em um material acessível para crianças.
De um ponto de vista geral, essas histórias tinham pouco menos a perder do que as de super-heróis das grandes editoras e, portanto, muito mais liberdade para discutir a sociedade sob uma ótica tragicômica ou violenta, em certos casos. No que tange um público atual elas podem ser tanto um material interessante para se entender como temas sérios eram abordados no passado, como um entretenimento ainda muito efetivo e fora do padrão atual.
Tal como funciona para o terror no cinema, este que não raramente se utiliza do absurdo para discutir algum tema relevante, com os quadrinhos não foi diferente. Ainda que o gênero não tenha a mesma relevância de outrora eles permanecem como um laboratório abandonado, que potencialmente pertenceu a um cientista louco, apenas à espera de novas mentes trabalharem as velhas problemáticas sociais.