Em um tribunal, uma decisão sem fundamentação é uma decisão arbitrária. Sem explicar as razões que levaram o julgador a decidir de determinada forma, não é possível saber o que levou aquela decisão a ser tomada, podendo, inclusive, ter sido tomada num jogo de cara e coroa.
Em Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une chute), Justine Triet não nos oferece nenhum fundamento para as respostas que o filme nos dá. O tempo todo, o filme opõe versões, oferece perspectivas distintas ou nos dá apenas recortes da realidade – ou nem isso, recortes das impressões. O filme, mesmo com um final fechado, carrega-se de ambiguidades, não permitindo ao espectador ter certeza sobre a “verdadeira história dos personagens”.
Sim, meu cinéfilo, abandone qualquer tentativa de achar um porto seguro neste filme. Trata-se de uma obra adaptada aos tempos da pós-verdade, das versões das redes sociais, da época em que as Inteligências Artificiais tornam explicita a falta de veracidade da imagem – nunca uma imagem foi uma reprodução fiel da realidade. Se você, caro leitor, ainda acredita que uma imagem pode traduzir uma verdade, bom assista a este filme e também veja as imagens criadas pelas IAs. Sairás duvidando de qualquer imagem.
No filme, Sandra Voyter (Sandra Hüller) é acusada de ter assassinado seu marido Samuel Maleski (Samuel Theis), encontrado morto após uma queda da janela de casa. Este pesadelo também é vivido pelo filho Daniel (Milo Machado Graner), que perdeu quase toda a visão após um acidente mencionado várias vezes no filme.
Anatomia de uma Queda é um brilhante filme de tribunal, um excelente filme policial, um dilacerante drama familiar, uma autópsia do relacionamento de um casal. Só tomaria certo cuidado em falar de estudo de personagem, pois não conseguimos sair com um diagnóstico definitivo sobre a personagem Sandra.
O grande mérito do filme é dissolver a certeza de que estamos diante da verdade. Todos os elementos fílmicos contribuem para obscurecer nossa leitura sobre o que seria a realidade que Sandra vive. Falemos de dois desses elementos.
O roteiro é o mais evidente deles. O roteiro, escrito por Justine Triet e seu marido Arthur Harari, busca questionar as certezas ao opor 3 possibilidades de verões desse fato. A promotoria defende o homicídio. Sandra defende que foi um acidente. E o filho vai abraçar a tese do suicídio. É interessante notar que, em uma conversa entre Sandra e seu advogado, este deixa claro que a hipótese do suicídio não colaria com o Júri – agindo exatamente como um bom advogado faria.
O roteiro também tem o mérito de não incluir fórmulas clássicas de um filme de tribunal. O roteiro não cria momentos grandiloquentes para os advogados – há muitas falar dos advogados (como um bom filme francês, fala-se muito), porém, não veremos aqueles discursos típicos de filmes americanos de tribunal. Veremos grandes embates, mas nenhum discurso definitivo ou prova que esclareça tudo. Você não vai encontrar aquele momento que define a culpa ou inocência de Sandra, por mais que saibamos do veredito. E esse é o grande mérito do roteiro, que de forma geral, consegue prender a atenção do espectador, deixando o ritmo cair um em alguns trechos do segundo ato.
Outro elemento que essencial para impedir o público alcance qualquer certeza é a montagem. Ela vai minando nossas certezas sobre a veracidade das imagens que vemos ou esconde elementos essencial para compreender o todo. Logo na primeira sequência, quando o filho sai de casa para passear com o cachorro, acompanhamos o passeio. Não vemos nada que aconteceu entre o final da entrevista que Sandra estava concedendo e a saída do filho para passear. Ou seja, somos colocados na perspectiva da criança, obrigada a se posicionar entre a hipótese de um pai suicida e de uma mãe homicida.
Um dos usos mais interessantes da montagem está nos flashbacks. Há vários momentos que acompanhamos algum acontecimento do passado, sempre envolto em uma fotografia mais esfumaçada. Essas cenas são encaixadas entre uma fala de alguém mais velho descrevendo a cena e, na outra ponta do corte, o rosto do pequeno Daniel, dando a entender que são reconstruções feitas pelo filho do casal, e não um registro da realidade.
Para mim, o uso mais interessante está na cena da briga do casal. As personagens tomam contato com essa briga por uma gravação em áudio feita por Samuel e reproduzida durante o julgamento. Começamos a sequência escutando a fita do ponto de vista da plateia que acompanha o Julgamento. Logo em seguida, a montagem passa a mostrar a cena. Assistimos um flashback construído a partir de um áudio. Para, na parte em que eles partem para a agressão física, voltarmos para sala do tribunal.
A sequência da conversa que vemos é toda filmada com uma luz naturalista e enquadramento médios, e deixando bastante tempo para os atores agirem, sem muitos cortes. Tudo para passar a impressão de veracidade. Em um filme qualquer, uma sequência dessas seria um flashback relatando a verdade, o que realmente aconteceu. Mas, em Anatomia…, a cena é colocada como uma evidência em um processo. Uma interpretação da direto a cerca de um áudio feito por Samuel, sem conhecimento da esposa, e que compõe as provas de um processo extremamente ambíguo. A sequência da briga torna-se apenas uma possibilidade do que aconteceu. Importante: o tribunal acompanha o áudio, mas lê em francês a tradução, uma vez que a conversa é um inglês. Mais uma demonstração de como as linguagens podem afetar em como entendemos os fatos.
Você pode achar que aquelas imagens representam uma verdade, ou apenas estamos diante de uma momento fora do contexto na vida de um casal. A montagem permite você escolher qual interpretação tomar. E a prova de que nem a diretora encerra a discussão é a localização dessa cena. Ela está no meio do tribunal. Apenas mais uma prova, nada definitiva. Se a montagem quisesse que essa discussão fosse uma verdade no filme, teria colocado ela antes da queda, aí poderíamos purificar essa imagem, tratando-a como uma verdade.
Mantendo um bom ritmo geral, a direção de Triet é segura e claramente manipulativa. O filme todo é marcado para gerar dúvidas no espectador. É uma demonstração de pulso de Triet na direção – fazendo merecer sua indicação ao Oscar – mas pode soar um pouco artificial demais em certos trechos, tirando um pouco o espectador do filme.
Anatomia de uma Queda é um filme dos tempos da pós verdade. Não há certezas, apenas versões e narrativas. Sem um lugar para aportarmos nossas certezas, só resta seguir o conselho do escritor português Jose Saramago, de que a verdade é apenas metade, a outra metade chama-se credibilidade.