sábado , 21 dezembro , 2024

Crítica | Emilia Perez – Musical audacioso entrelaça de forma épica tráfico, transexualidade e política social [Cannes 2024]

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Visto em Cannes 2024

Os primeiros segundos de Emilia Perez nos colocam dentro de uma ópera, na qual Rita (Zoe Saldana), uma advogada superqualificada, desperdiça seu talento defendendo os caras os quais, pessoalmente, ela gostaria de condenar. Logo o estranhamento musical dá espaço ao maravilhamento por conta da forte canção que nos conta o necessário e é sonoramente aprazível.  



Décimo longa de Jacques Audiard, Emilia Perez confronta paradigmas e inverte nosso olhar sobre o submundo do narcotráfico, além de nos encantar em meio a uma dramática história sobre a eterna incompletude e o latente desejo humano. Com uma mistura inusitada e, portanto, com grandes chances de naufragar antes mesmo de zarpar, a obra se reinventa de modo elétrico e nos surpreende a cada sequência. 

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Segundos após escutarmos uma linda composição sobre injustiça e violência doméstica em cenas entre tribunal e as ruas com barraquinha da capital do México, Emilia Perez parecia caminhar para o habitual discurso de feminista. Jacque Audiard, no entanto, corta o musical e injeta um energizante clima de suspense a partir de uma audaciosa proposta oferecida a Rita. 

Apesar de colecionar vitórias, a advogada é recompensada com um salário medíocre, então quando o temido chefe do cartel mexicano Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón) ofere um trabalho milionàrio, ela não tem como recursar. Primeiro, porque é uma saída da sua mitigada situação financeira e moral no trabalho; segundo, o homem de dentes dourados e tatuagens no pescoço é ameaçador. Contudo, é a originalidade do seu pedido que fascina Rita: o traficante deseja aposentar-se e desaparecer do mundo, mas tornando-se uma mulher como sempre sonhou.

Para apresentar a transição de forma minuciosamente explicada, mas visualmente velada, Jacques Audiard utiliza-se mais uma vez do seus impressionantes números musicais. Os ritmos variam em cada canção, mas todas têm um perfeito encaixe no roteiro, com letras e arranjos engendrados ao ritmo dos personagens. Com a “morte” de Manitas, Rita ocupa-se de encontrar um novo lar para sua esposa Jessie (Selena Gomez) e seus dois filhos na segura e tranquila Lausanne, na Suíça. 

Passados quatro anos, Rita está em um jantar de negócios em Londres, quando encontra outra mulher vinda do México. Apresentada como Emilia Perez, a transformação entre a figura medonha do tráfico e a mulher estonteante diante de nós é evidente, e ambos os personagens são vividos por Karla Sofía Gascón de maneira memorável. 

Ao colocar uma personagem com tanta camadas em tela, Jacques Audiard não somente prova a composição de boas personagens para atrizes trans, mas também coloca um verniz reluzente em suas histórias, na qual as lutas de três mulheres são expostas, de modo particular a cada uma delas, natural, vivo e dinâmico. O encontro entre a advogada e o seu cliente não é por acaso. Emília sente falta dos filhos.

Quando pensamos em uma mulher trans, a imaginamos em cima dos palcos e em um caso mal resolvido com um homem, como em Uma Mulher Fantástica (2017), de Sebastián Lelio e Manhãs de Setembro (2021— ), série da Prime Vídeo, de Luís Pinheiro. Já Audiard nos tira do lugar comum e nos coloca em diálogo com a periferia da capital do México e o confronto do personagem com a sua identidade anterior. 

Durante anos de sua jornada, Emília foi responsável por desaparecer com os corpos de centenas de testemunhas, como queima de arquivo, porém em sua nova caminhada, ela decide fundar uma associação para buscar pessoas desaparecidas e ajudar familiares e próximos a colocar um ponto final em suas aflitivas buscas. Para isso, Emília busca novamente ajuda a Rita para ajudá-la a colocar o negócio de pé. 

Enquanto Rita dedica-se a encontrar sentido na vida através do trabalho, sem tempo para flertes, Jessie vê a oportunidade de reconectar-se ao amor da sua vida Gustavo (Édgar Ramírez) de volta ao México. Com a morte do marido e a fuga para Suíça, ela abandonou o amante, o qual nunca ousaria confessar ao violento marido Manitas. 

Ao pensar que Emília é uma prima do falecido, Jessie revela seus segredos e suas decepções com o casamento anterior e aceita toda ajuda para cuidar dos filhos. Do seu lado Emília encontra em Epifania (Adriana Paz), o carinho necessário para completar os seus dias já preenchidos pela presença dos filhos e o trabalho no terceiro setor. 

Se nesse momento a música pop preenche o ambiente do filme, é porque ela é a que melhor traduz a mistura de tolice e desejo. Assim como na cena na farmácia de Bela Vingança (2020), de Emerald Fennell, temos Jessie e Gustavo em uma mistura de paixonite e sensualidade, a qual é a responsável por tornar Emilia Perez um musical inesquecível. Os sentimentos de posse, desejo, insatisfação, medo e vingança se entremeiam entre as três mulheres e o destino delas é decidido no meio de muita ação.

Ganhadoras da Palma de Ouro de Melhor Interpretação Feminina em Cannes 2024

Assim como nas suas obras anteriores, Jacques Audiard constrói narrativas modulares, nas quais o destino dos seus personagens são imprevisíveis, ricos e cheios de nuances até o seu remate. O cineasta francês sempre nos coloca nesse ponto de efervescência próximo à ebulição, como no ganhador da Palma de Ouro Dheepan: O Refúgio (2015), o poderoso O Profeta (2009), e ainda o impactante De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005), com Romain Duris. 

Com um elenco afiadíssimo, um surpreendente roteiro a seis mãos — composto também por Thomas Bidegain e Nicolas Livecchi —  e canções de tirar o fôlego, Emilia Perez dificilmente sairia do Festival de Cannes 2024 sem nenhum prêmio, portanto, levou o Prêmio do Júri e o de melhor interpretação feminina para as quatro atrizes principais. O longa promete trilhar um brilhante caminho até o Oscar 2025.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Décimo longa de Jacques Audiard, Emilia Perez confronta paradigmas e inverte nosso olhar sobre o submundo do narcotráfico, além de nos encantar em meio a uma dramática história sobre a eterna incompletude e o latente desejo humano. Com uma mistura inusitada e, portanto, com grandes chances de naufragar antes mesmo de zarpar, a obra se reinventa de modo elétrico e nos surpreende a cada sequência. 

Segundos após escutarmos uma linda composição sobre injustiça e violência doméstica em cenas entre tribunal e as ruas com barraquinha da capital do México, Emilia Perez parecia caminhar para o habitual discurso de feminista. Jacque Audiard, no entanto, corta o musical e injeta um energizante clima de suspense a partir de uma audaciosa proposta oferecida a Rita. 

Apesar de colecionar vitórias, a advogada é recompensada com um salário medíocre, então quando o temido chefe do cartel mexicano Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón) ofere um trabalho milionàrio, ela não tem como recursar. Primeiro, porque é uma saída da sua mitigada situação financeira e moral no trabalho; segundo, o homem de dentes dourados e tatuagens no pescoço é ameaçador. Contudo, é a originalidade do seu pedido que fascina Rita: o traficante deseja aposentar-se e desaparecer do mundo, mas tornando-se uma mulher como sempre sonhou.

Para apresentar a transição de forma minuciosamente explicada, mas visualmente velada, Jacques Audiard utiliza-se mais uma vez do seus impressionantes números musicais. Os ritmos variam em cada canção, mas todas têm um perfeito encaixe no roteiro, com letras e arranjos engendrados ao ritmo dos personagens. Com a “morte” de Manitas, Rita ocupa-se de encontrar um novo lar para sua esposa Jessie (Selena Gomez) e seus dois filhos na segura e tranquila Lausanne, na Suíça. 

Passados quatro anos, Rita está em um jantar de negócios em Londres, quando encontra outra mulher vinda do México. Apresentada como Emilia Perez, a transformação entre a figura medonha do tráfico e a mulher estonteante diante de nós é evidente, e ambos os personagens são vividos por Karla Sofía Gascón de maneira memorável. 

Ao colocar uma personagem com tanta camadas em tela, Jacques Audiard não somente prova a composição de boas personagens para atrizes trans, mas também coloca um verniz reluzente em suas histórias, na qual as lutas de três mulheres são expostas, de modo particular a cada uma delas, natural, vivo e dinâmico. O encontro entre a advogada e o seu cliente não é por acaso. Emília sente falta dos filhos.

Quando pensamos em uma mulher trans, a imaginamos em cima dos palcos e em um caso mal resolvido com um homem, como em Uma Mulher Fantástica (2017), de Sebastián Lelio e Manhãs de Setembro (2021— ), série da Prime Vídeo, de Luís Pinheiro. Já Audiard nos tira do lugar comum e nos coloca em diálogo com a periferia da capital do México e o confronto do personagem com a sua identidade anterior. 

Durante anos de sua jornada, Emília foi responsável por desaparecer com os corpos de centenas de testemunhas, como queima de arquivo, porém em sua nova caminhada, ela decide fundar uma associação para buscar pessoas desaparecidas e ajudar familiares e próximos a colocar um ponto final em suas aflitivas buscas. Para isso, Emília busca novamente ajuda a Rita para ajudá-la a colocar o negócio de pé. 

Enquanto Rita dedica-se a encontrar sentido na vida através do trabalho, sem tempo para flertes, Jessie vê a oportunidade de reconectar-se ao amor da sua vida Gustavo (Édgar Ramírez) de volta ao México. Com a morte do marido e a fuga para Suíça, ela abandonou o amante, o qual nunca ousaria confessar ao violento marido Manitas. 

Ao pensar que Emília é uma prima do falecido, Jessie revela seus segredos e suas decepções com o casamento anterior e aceita toda ajuda para cuidar dos filhos. Do seu lado Emília encontra em Epifania (Adriana Paz), o carinho necessário para completar os seus dias já preenchidos pela presença dos filhos e o trabalho no terceiro setor. 

Se nesse momento a música pop preenche o ambiente do filme, é porque ela é a que melhor traduz a mistura de tolice e desejo. Assim como na cena na farmácia de Bela Vingança (2020), de Emerald Fennell, temos Jessie e Gustavo em uma mistura de paixonite e sensualidade, a qual é a responsável por tornar Emilia Perez um musical inesquecível. Os sentimentos de posse, desejo, insatisfação, medo e vingança se entremeiam entre as três mulheres e o destino delas é decidido no meio de muita ação.

Ganhadoras da Palma de Ouro de Melhor Interpretação Feminina em Cannes 2024

Assim como nas suas obras anteriores, Jacques Audiard constrói narrativas modulares, nas quais o destino dos seus personagens são imprevisíveis, ricos e cheios de nuances até o seu remate. O cineasta francês sempre nos coloca nesse ponto de efervescência próximo à ebulição, como no ganhador da Palma de Ouro Dheepan: O Refúgio (2015), o poderoso O Profeta (2009), e ainda o impactante De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005), com Romain Duris. 

Com um elenco afiadíssimo, um surpreendente roteiro a seis mãos — composto também por Thomas Bidegain e Nicolas Livecchi —  e canções de tirar o fôlego, Emilia Perez dificilmente sairia do Festival de Cannes 2024 sem nenhum prêmio, portanto, levou o Prêmio do Júri e o de melhor interpretação feminina para as quatro atrizes principais. O longa promete trilhar um brilhante caminho até o Oscar 2025.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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