quinta-feira, março 28, 2024

Crítica | Sarah Paulson rouba a cena na controversa ‘Ratched’, nova série de Ryan Murphy

Em 1975, Louise Fletcher conquistou o mundo com sua interpretação irretocável como a enfermeira Mildred Ratched no clássico ‘Um Estranho no Ninho’. Rapidamente, a complexa persona arquitetada pelo romancista Ken Kesey ganhou dimensões novas e bem mais profundas, colocando-a como um símbolo da tirania e da corrupção institucional – ainda mais por agir de modo passivo-agressivo para garantir que os pacientes do Instituto Psiquiátrico de Salem fossem-lhe fiéis e obedientes, punindo quem ousasse contraria as suas ordens – como Randie McMurphy (Jack Nicholson), que sofre lobotomia após juntar os outros residentes do manicômio em uma onda de protestos contra Mildred. Não é surpresa que, por sua carga alegórica, Ratched tenha se transformado em uma das maiores vilãs da história do cinema, servindo de inspiração para criações contemporâneas e análises sociológicas sobre a maldade e a ambição humanas.

Em 2020, o prolífico Ryan Murphy (‘American Horror Story’) resolveu abraçar a personagem e lhe fornecer uma história de origem – dando vida, dessa forma, à série original da Netflix, ‘Ratched’. Ambientada quase vinte anos antes dos eventos do longa-metragem, a demoníaca enfermeira foi encarnada pela premiada Sarah Paulson em uma backstory totalmente diferente do que esperávamos, talvez tentando explicar suas atitudes controversas, talvez nos querendo dar uma centelha de empatia, retirando-a dos estereótipos em que foi infundida. Entretanto, a série se vale de caricaturas exageradas demais para que se dê algum tipo de credibilidade: o roteiro, seguindo os passos de tantas outras produções de Murphy, como ‘Hollywood’ e ‘The Politician’, aposta suas fichas em um visual impecável, colocando as tramas em um patamar ora prolixo, ora superficial demais. Ademais, as atuações conseguem esconder os erros narrativos e garantir que o público se envolva – mesmo deixando um gostinho agridoce no final.

RATCHED (L to R) SARAH PAULSON as MILDRED RATCHED in episode 103 of RATCHED Cr. COURTESY OF NETFLIX © 2020

Mildred Ratched é construída quase de forma sociopata: uma cética dama que parece ser da alta sociedade, mas na verdade procura fazer parte do time de enfermeiros do Hospital Estadual de Lucia, na Califórnia, contando certas mentiras desde seu primeiro momento em cena para garantir o emprego e vivendo em um motel à beira da estrada enquanto planeja algo não revelado logo de cara. Porém, conforme os capítulos se desenrolam, descobrimos que Mildred quis trabalhar lá para ajudar seu irmão, Edmund Tolleson (Finn Wittrock), recém-admitido no instituto por ter assassinado quatro padres a sangue-frio. É claro que, para a segurança dos dois, ninguém tem ideia de sua relação – e nem mesmo Murphy parece fazer muita questão de investir nessa primeira reviravolta, deixando-a de lado e recuperando-a sem muita necessidade ou explicação.

Esteticamente, ‘Ratched’ é tudo que se espera de uma produção do showrunner e criador supracitado: comandando os dois primeiros episódios, deve-se notar que Murphy amadureceu consideravelmente desde sua estreia na indústria do entretenimento; enquanto era de se esperar que ele resgatasse certas inflexões caprichosas de obras anteriores, como planos holandeses e ângulos irreverentes, percebe-se que, aqui, há um apreço pela coesão comedida e pelo excesso de simetria. A série, no geral, tem espaço de sobra para invenções mirabolantes e paletas fabulescas – e faz isso ao fazer apologia ao body horror e ao gore diversas vezes; mas o foco sempre se destina à compostura da personagem de Paulson e de que forma, mesmo sem pronunciar uma palavra sequer, nos chama a atenção.

RATCHED (L to R) SARAH PAULSON as MILDRED RATCHED in episode 107 of RATCHED Cr. SAEED ADYANI/NETFLIX © 2020

Murphy, ao lado de seu time criativo, presta bastante atenção à paleta de cores e cuida para que a direção de arte seja guiada pela sobriedade e pela melancolia exuberante dos tons esverdeados – destinando alguns objetos em um composée apaixonante. À Ratched, por sua vez, destina-se cores complementares, ultrajantes, até mesmo, quando justapostas à clareza do hospital ou aos cenários kitsch que acompanham sua jornada: seus vestidos amarelo-mostarda e seu cabelo ruivo parecem pontos luminosos em um túnel obscuro, transmutando-a na força-motriz que rege a organicidade desse universo fora do convencional. O problema é que essa imagética sem igual, que transforma o show no mais belo da carreira de Murphy, é inconvenientemente abandonada quando a protagonista entra em seu arco de redenção, fundindo-a ao amorfismo dos outros personagens.

Felizmente, Paulson já se mostrou como uma ótima atriz – e se junta à excelência de seus colegas, especialmente Wittrock, que traz elementos de sua psicótica atuação em ‘American Horror Story: Freakshow’, e Judy Davis como a enfermeira-chefe Betsy Bucket, mostrando sua conhecida versatilidade mais uma vez. Sharon Stone também dá as caras como a vingativa socialite Lenore Osgood, que parte numa caçada para matar o Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones), diretor do Lucia, e cruza caminhos com a perigosa timidez e centralidade de Mildred. E, como é de praxe, a outrora estigmatizada vilã é humanizada com uma trágica história que transcende as expectativas e que nos faz sentir compaixão por atos autoprotetivos – ainda que, no final das contas, a “mágica” de sua frieza e de seu imperioso controle sobre os outros tenha sido varrida para debaixo do tapete.

‘Ratched’ comete o equívoco de querer ser mais do que consegue – algo que realmente seria, caso não se deixasse levar pelas exaustivas fórmulas de qualquer drama novelesco dos últimos anos. Até mesmo a rebeldia cênica, própria das criações, dá um passo para trás como forma de colocar diálogos previsíveis e monótonos nas telinhas; mas, conforme percebemos os erros, é difícil parar de prestar atenção àquilo que nos é contado – principalmente com a majestosa elegância que nos aguarda desde o princípio.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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