quinta-feira, maio 2, 2024

Dica do Fim de Semana | ‘O Diabo Veste Prada’ é sempre uma divertida pedida para ver (ou rever)

O mundo da moda é um dos poucos com uma gama extensa de infinitas possibilidades a serem exploradas. Desde que o homem aprendeu a se enxergar como um ser autossuficiente e dotado de personalidade, a maior forma de expressão com o qual conseguiu de identificar foi através do vestuário: e a história das roupagens e dos trajes dita, ao mesmo tempo, as regras socioeconômicas de determinada época, correlacionando-se a um pano muito maior do que se pensa, além de servir como principal fator para a diferença abismal entre as castas sociais. Entretanto, apesar das duras críticas que são feitas acerca dessa indústria multibilionária, é inegável dizer que ela dá margem a aspirações, desejos, ambições, permitindo o constante fomento do ser humano de ser qualquer pessoa que bem desejar apenas por portar um símbolo de seu individualismo.

Não é nenhuma surpresa que essa vertente artística seja uma das principais a serem exploradas ao máximo pelo cinema, pela televisão e pela literatura – e se os esforços de Ryan Murphy para recontar os eventos acerca da morte de Gianni Versace partem de uma premissa dramática e verídica, David Frankel já havia nos fornecido uma perspectiva tão crível quanto, mas se valendo de doses muito equilibradas de humor, drama e uma ácida ironia crítica com uma das obras mais adoráveis da contemporaneidade: O Diabo Veste Prada’.

Baseado no romance homônimo de Lauren Weisberger – e de forma inesperada em suas próprias experiências profissionais -, a narrativa traz figuras que se tornariam icônicas e até mesmo idolatradas por grande parte do público apaixonado por comédias românticos e jornadas de superação. O resultado não é apenas satisfatório, como transforma o escopo arquitetado por ambos o cineasta e a autora em um microcosmos deliciosamente perigoso e envolvente.

DOLCE VITA

O gosto agridoce do poder e do sucesso é um dos principais temas a girarem em torno da protagonista da história. Iniciando-se com uma sequência quase surreal na qual inúmeras mulheres com corpos esculturais e dotadas de uma beleza magnífica e artificial, é justamente o rosto de Andrea “Andy” Sachs (interpretada pela carismática Anne Hathaway) que se destaca, seja por sua personalidade dissonante, seja pelo naturalismo exacerbado que sua despreocupada personalidade se propõe a mostrar aos outros. É claro que, a priori, ela não se encontra mergulhada na competitiva indústria da moda – inclusive reafirma através de breves e sedutores monólogos o quão vazio ela acha essa vertente artística, principalmente por considerá-la extremamente manipuladora.

Mesmo assim, Andy está inserida em um contexto vivido pela maioria das pessoas: a forma irônica com que o destino trabalha. Não é surpresa, levando essa premissa em consideração, que seu promissor currículo como jornalista recém-formada caia nas mãos do empresário Irv Ravitz (Tibor Feldman), responsável pela firma editorial Elias-Clark. O grupo independente é reconhecido por ser um dos mais viscerais do mundo editorial e por sua expansiva gama de temas e abordagens – e seu nome é sustentado pela revista de moda Runway, uma das mais conhecidas globalmente e que inclusive possui filiais em diversos países, incluindo a capital da moda, Paris. A personalidade despojada e kitsch da personagem principal logo é percebida até mesmo com certo receio; sua autoestima e força de vontade funcionam como um paradoxo a ser analisado com exímia cautela, ainda mais durante o primeiro encontro entre ela e a egocêntrica primeira-assistente Emily (Emily Blunt).

O confronto ideológico entre as duas também serve como base para todo o desenrolar da narrativa e para a concepção de arcos de redenção e de amadurecimento que permeiam cada uma das figuras do longa-metragem. Emily tornou-se responsável por escolher a segunda-assistente da diretora da revista, mas até agora não conseguiu achar alguém à altura de substituí-la, visto que foi recentemente promovida. Mas sua habilidade em se mostrar para os outros não é de forma alguma intimidadora para Andy, a qual observa o seu possível futuro local de trabalho com uma mistura de pavor e reverência, evidenciada pelo uso de cores explosivas e quentes em contraste com seu figurino desbotado e bem mais sutil.

Frankel já demonstra suas habilidades de criação atmosférica logo no primeiro ato, com sequências filler e de continuidade que se repetem de forma quase cronológica ao longo da obra. O mais incrível, sem dúvida, é também sua capacidade de não cair na monotonia, e sim em uma fluidez inenarrável que garante a fidelidade catártica da audiência para os personagens e para a trama. Essa concretização já ocorre com a chegada da enigmática e severa Miranda Priestly (Meryl Streep em um de seus melhores papéis): sua expressão blasé é o fator que lhe tira a humanidade e a coloca num pedestal divino a ser idolatrado e temido ao mesmo tempo. Ora, o público segue os mesmos passos de Andy dentro da companhia multibilionária com a chegada de Miranda à sua própria sede, tentando entender o pânico que se alastra pelos corredores e para cada um dos funcionários, os quais são forçados a abandonar seus momentos de prazer – como comer ou vestir sapatos confortáveis – e retornar para o impecável mundo da haute-couture.

Não deixe de assistir:

A “encarnação do diabo” é uma metáfora muito bem posta nas páginas do romance assinado por Weisberger e não poderia ter sido melhor traduzida para sua adaptação cinematográfica. O título logo é compreendido pela monumental presença de Streep em cada uma das construções cênicas – e sua primeira aparição é adornada com uma bolsa Prada de valor inestimável e que já mostra sua afeição pelo luxo. Miranda não tem papas na língua, mas nunca desce do salto ou perde a compostura: ela se mantém em uma incrível linearidade tonal, recusando-se a aumentar a voz para falar com suas subordinadas e poupando-se de palavras extras para expressar seu constante descontentamento. “É só isso” emerge como um de seus bordões mais relembrados, principalmente por seguir uma série de pedidos ininteligíveis, vagos e cômicos pelas razões erradas.

Não podemos deixar de sentir compaixão pela completa falta de senso de Andrea dentro dos iluminados e impecáveis corredores da Runway. Ela é contratada sem nenhuma premeditação e, assim que pisa com seus sapatos de terceira idade na sala de sua chefe, mergulha em um tour-de-force que é ao mesmo tempo real e inadmissivelmente prazeroso de ser acompanhado. Sua jornada em busca de reconhecimento e até mesmo da reiteração de sua individualidade, outrora movida pela passagem por aquela revista até conseguir escalar para seu sonho de consumo (o The New York Times), é bombardeada por uma série de imposições demandadas por Miranda – uma versão carne e osso da ácida Cruella de Vil.

Andy talvez seja uma das protagonistas menos incômodas das comédias românticas atuais. Ela foge aos paradigmas, ainda que sofra com o peso das suas escolhas em relação ao namorado Nate (Adrian Grenier) e aos amigos Lily (Tracie Thoms) e Doug (Rich Sommer), e representa uma investida ao empoderamento feminino no tocante à preferência pelo trabalho e à total dedicação ao mundo corporativo que manter-se em uma zona de conforto familiar. Mesmo assim, o filme preza por mostrar os dois lados de uma mesma moeda e, como é de se esperar, a protagonista eventualmente se funde àquilo que mais criticava, percebendo como a cultura iconográfica é realmente importante até mesmo para o progresso de uma sociedade inteira.

Sua completa falta de tato para questões da alta-costura pode ser encarada com desprezo tanto por Miranda quanto por Emily, mas é a irreverente e sonhadora personalidade de Nigel (Stanley Tucci) que insurge como a figura do guardião mais inesperada possível. Ele lhe apresenta os deliciosos e quase orgásmicos momentos da prova de roupas e do encontro de um estilo próprio, o qual serve de deleite para os olhos. A transição de uma mulher rebelde para as modelos inspiradoras para as capas da revista vem num plano-sequência magnífico e perscrutado pela atemporalidade de Vogue, música cantada por Madonna e que preza pela beleza e pela arte.

Em se tratando de uma tour-de-force, Andy obviamente irá passar por inúmeros obstáculos. Além dos enfrentados dentro da editora, ela também lida com a pressão que sofre por seus relacionamentos mais íntimos de voltar a perseguir o que sempre sonhou ao mesmo tempo em que admite sua fragmentação: a protagonista passa a adorar o ambiente em que vive, as conexões que faz e as infinitas portas que finalmente se mostram abertas em seu futuro – incluindo a de um perigoso romance que toma forma entre ela e o charmoso escritor e jornalista Christian Thompson (Simon Baker). Mas o mais inesperado e incrível é a afeição às avessas que começa a cultivar por Miranda, respeitando sua história, sua trajetória e entrando em alguns conflitos silenciosos a respeito de seu tratamento para com as outras pessoas.

C’MON, VOGUE

Se Hathaway rouba a cena, Streep faz mágica. É inegável dizer que a atriz, conhecida por sua versatilidade, conseguir entregar uma rendição emocionante da personagem inspirada por uma das reais chefes de Weisberger quando esta trabalhava em uma prestigiada revista de moda. E aqui, Miranda Priestly é o suprassumo do mundo da moda, um nome temido, como supracitado, mas que deve ser tratado com o respeito que tanto merece, principalmente por ter feito para essa indústria visceral o que muitos consideraram impossível – incluindo o lançamento de nomes que viriam a se tornar extremamente famosos dentro de poucos anos.

Como já foi dito, sua presença é majestosa. Os diálogos tão bem traçados e colocados sobre a suposta “vilã” da narrativa são simples, humildes, porém dotados de um impacto chocante que apenas reafirma sua superioridade perante a mortandade do restante dos personagens. Ela é vista como o demônio em saltos, e não é por qualquer coisa: desde sua primeira aparição até os momentos finais, sua expressão endurecida não deixa transpassar de forma redundante o que realmente sente, preferindo manter-se dentro de sua bolha e dizer através de duras e ácidas palavras o que ela espera de seus empregados e como tudo deve estar na mais perfeita ordem.

As sequências que trazem como foco o profissionalismo da editora-chefe são equilibradas com um senso dramático e cômico imprescindíveis para a fluidez do longa. Ela não mede esforços para diminuir, por exemplo, a falta de compreensão da recém-contratada assistente acerca da escolha de dois cintos que parecem realmente muito idênticos: nesse momento, Streep vale-se até mesmo de uma investida mais teatral, arregalando os olhos momentaneamente antes de despejar seu monólogo verborrágico sobre as diferenças da cor azul para uma desesperada Andy. E isso se repete mais algumas vezes e não apenas com ela, mas sim com a “incompetência” de seu time criativo que não consegue enxergar além da caixa na qual estão enfurnados.

Isso tudo parece muito endossado até meados do segundo ato, durante o qual passamos por uma brusca mudança de cenário. Auxiliado pela dialógica fotografia de Florian Ballhaus, é notável como a opção por uma luz dura é diretamente proporcional à ambiência atmosférica arquitetada por Frankel: cada uma das peças dispostas nas construções cênicas é dotada de personalidade, até mesmo as inanimadas, reafirmando o conceito de idolatria iconográfica defendida pelos funcionários da Runway. Andrea não compreende a grandiloquência daquilo tudo, mas logo se vê rumo a um arco de epifania que a permite compreender até mesmo a personalidade intransigente de sua chefe.

A estética logo muda para algo mais intimista quando a protagonista leva a última versão atualizada da revista para a casa da editora-chefe. A coercitividade da iluminação logo é substituída pela amálgama entre personagens e cenário. Aqui, deflagra-se um dos maiores medos enfrentados por Miranda – o medo de sua família ser destruída por sua carreira: a lividez de tons mais quentes é trocada por cores mais neutras e frias, como o roxo, o marrom e até mesmo o branco, que mostram os traumas nos quais ela se vê presa e deseja sair o mais rápido possível ao retornar para a segurança e o controle do império que construiu.

Sua personalidade inabalável encontra uma mortal barreira conforme chegamos ao final do filme. Assim que Andy finalmente se transforma naquilo que mais temia, andando numa corda-bamba que a leva a viajar para Paris juntamente à sua chefe e assemelhando-se cada vez mais a um cachorrinho de estimação, ela percebe que todos os esforços aos quais se para manter-se fiel aos valores que sempre defendeu não valeram de absolutamente nada. Em uma sequência dominada pela tensão ideológica e ambientada dentro de uma limusine, Miranda mostra como todas as escolhas que obrigou à sua subordinada realizar na verdade foram feitas dentro de um escopo de livre-arbítrio involuntário, o qual mostrou a verdadeira natureza e ambição da protagonista. “Todos querem ser nós”, ela declara para uma consternada Andrea Sachs que não se reconhece mais.

Em se tratando de um filme cuja base é a moda, o figurino escolhido pelas hábeis mãos de Patricia Field obviamente não funcionariam apenas como vestimentas, mas sim como símbolos metafóricos das emoções dos personagens. A narrativa é sensorial, e esse envolvimento, ao invés de ser retratado pela trilha sonora, por exemplo, encontra um espaço de grande exploração com os trajes, os quais, além de representarem uma ode à alta-costura, também funcionam como paródias das tendências que marcaram época e dos sacrifícios feitos dentro desse cosmos para que o tão sonhado renome seja alcançado.

A FALSA FRIVOLIDADE

Se tem uma coisa que O Diabo Veste Prada’ nos ensina é que há muito mais do que a superfície nos mostra. Essa obra não apenas nos fala sobre a importância da moda para o ser humano e como ela está diretamente relacionada aos desejos mais íntimos de qualquer indivíduo, mas também serve como uma sutil e deliciosa crítica para aquilo que compreendemos como sacrifício e sonho. Desde a criação de seus personagens até a progressão narrativa, essa comédia romântica às avessas é digna de ser relembrada por vários e vários anos.

De qualquer forma, o longa nos mostra como a moda é frequentemente considerada superficial, resultado de seu inerente caráter efêmero. Deveria ser reconhecida como uma indústria global que movimenta trilhões e emprega centenas de milhares de pessoas para satisfazer a necessidade de autoexpressão da era pós-moderna e a crescente demanda dos consumidores por novidades. Estamos todos sujeitos a ela, como escreveu Oscar Wilde com sua típica ironia em O Retrato de Dorian Gray’: “só os superficiais não julgam pelas aparências”.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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