Como fazer um filme de zumbi de baixo orçamento, de forma rápida e sem cortes? O cineasta francês Michel Hazanavicius (O Formidável) apresenta exatamente os elementos de tais “exigências” nos primeiros 40 minutos de Coupez ! (em português Corta!). Os atores são ruins, os diálogos execráveis e o diretor é abusivo, violento e insano. Assim, a adaptação da série japonesa “Z” desenvolve-se diante dos nossos olhos incrédulos e dos nossos risos irrefreáveis.
Em plano sequência, a primeira parte do filme é uma homenagem a todas as obras de horror de baixo orçamento e de grandes nomes do cinema de gênero, como George A. Romero, John Carpenter e até mesmo Quentin Tarantino. Quando a matança de zumbis chega ao seu ápice e fim, o cenário nos leva para um mês antes do banho de sangue. O jogo de verter a linearidade funciona perfeitamente ao enredo, tal como em Amnésia (2000) e Irreversível (2002).
Se no primeiro momento vemos um diretor ensandecido a ponto de liberar uma maldição no set de filmagem para construir um verdadeiro estado de pânico entre os atores, o segundo momento é de acompanhar como tudo isso teve início. Adaptado do sucesso japonês Plano-Sequência dos Mortos (2017), de Shin’ichirô Ueda, a versão de Hazanavicius lança mão da atriz japonesa Yoshiko Takehara do original, no papel de Madame Matsuda, uma produtora interessada em fazer uma adaptação francesa da sua série fenômeno de audiência.
Os poréns desse projeto são abundantes, a começar por manter os nomes japoneses e cada parte da história ligada à cultura japonesa. Comparações entre as cinematografias dos dois países entram na discussão e promovem engraçados debates de pontos de vista culturais. Pouco a pouco, entre a rápida produção e a apresentação dos personagens do início, os sentidos vão se encaixando e as situações passam a ser ainda mais engraçadas do que antes.
Desde o diretor decadente Rémi (Romain Duris), frustrado com a própria trajetória de comerciais e vídeos institucionais, casado com a ex-atriz Nadia (Bérénice Bejo) e pai da aspirante cineasta Romy (Simone Hazanavicius), o roteiro apresenta toda a metalinguagem necessária para história construir um espelho com a realidade. Conhecido pela franquia paródica de 007, Agente 117: Uma Aventura no Cairo (2006) e Agente 117: Rio Não Responde Mais (2009), mas principalmente pelo oscarizado O Artista (2011), Hazanavicius trabalha ao lado da esposa Bérénice, da própria filha Simone e da sobrinha Raïka, mas a derrocada está longe da sua carreira.
Por outro lado, a vontade de um pai de buscar a admiração da filha no filme manifesta um quê de realidade de fora para dentro da tela. A última parte do enredo, o making of da produção inicial, é uma inebriante performance de amor à sétima arte e ao trabalho em equipe.
Sem deixar de lado as farpas às láureas do cinema, ao maquinário e à indústria por trás disso tudo, o roteiro aponta que a arte é maior e o cinema é uma paixão transmitida de pais para filhos. Apresentada pelo trabalho entusiasmado de uma equipe com recursos parcos e ideias esdrúxulas, a máxima uma câmera na mão e uma ideia na cabeça soma-se à vontade dos colaboradores de ultrapassar os obstáculos e conseguir um plano sequência ao vivo da melhor forma possível.
Com a mistura de uma aspirante a cameraman (Raïka Hazanavicius), um hilário editor de som (Jean-Pascal Zadi), um ator alcoólatra (Grégory Gadebois), uma jovem influencer digital (Matilda Lutz) e uma promessa cinematográfica (Finnegan Oldfield), Corta! é uma daquelas obras que batem na indústria, mas, na verdade, são uma declaração calorosa de amor a todos aqueles que já pisaram em um set de filmagem. Tal como em O Artista e O Formidável, o cineasta francês acerta em buscar na própria fábrica de sonhos a sua inspiração.
** Filme de abertura do Festival de Cannes 2022, no dia 17 de maio, ainda sem previsão de estreia no Brasil.