quinta-feira, maio 9, 2024

Mês das Bruxas | ‘HEX’ é um romance de terror PERFEITO para quem quer se assustar

‘HEX’ está longe de ter uma premissa original: uma pequena cidade que beira o Vale do Rio Hudson é obrigada a viver com a presença maligna e centenária de uma bruxa de mais de trezentos anos de idade. É quase óbvio arquitetar uma história como qualquer outra que traga essa personagem como centro explosivo de uma catástrofe iminente – podemos imaginar mortes, doenças, pragas, maldições e mais uma série de coisas que já se tornou intrínseco às narrativas que trazem tal vilã à tona. Entretanto, já caímos inúmeras vezes no velho equívoco de “julgar o livro pela capa” (neste caso, literalmente), até mesmo com produções audiovisuais que se provaram muito mais profundas do que lhes dávamos crédito – como, por exemplo, o longa A Bruxa’, de Robert Eggers, que causou um alvoroço quase herege à época de seu lançamento.

O romance causa o mesmo efeito: tudo é muito diferente do que pensávamos, e o escritor holandês Thomas Olde Heuvelt faz questão de desconstruir e deixar o mais explícito possível cenas para as quais definitivamente não estávamos preparados. Não é à toa que podemos considerar HEX’ sua obra-prima, ainda que funcione como uma releitura modernizada de uma versão um tanto ultrapassada, por assim dizer. Nas poucas mais de 350 páginas, o novelista não apenas se entrega à própria mitologia que ousa repaginar e recriar, mas nos deixa no ciclo vicioso de questionamentos intimistas que nos levam a duvidar até mesmo da nossa própria sombra.

Nenhuma palavra é capaz de resumir o livro além de fabuloso. Mesmo que a primeira página se construa em uma miscelânea de detalhes confusos e nem um pouco orgânicos, Heuvelt retorna para um brilhantismo narrativo aplaudível ao utilizar construções sintáticas fluidas que não pesam em momento algum – e não estou sendo apadrinhador, mas sim trazendo verdades que devem sim ser ditas e reafirmadas: a escrita do holandês é soberba, fácil de compreender, e visceralmente sedutora. Por experiência, é muito difícil encontrar um romance de gênero contemporâneo que não ceda a convencionalismos baratos e entregue mensagens deturpadas e/ou vazias – felizmente, a história em questão supera quaisquer expectativas. 

A trama não tem protagonistas definidos com precisão; temos, sim, alguns nomes que despontam mais que outros, como a família Grant, formada por dois filhos adolescentes e um casal cujo relacionamento parece perfeito a priori, ou então o chefe de operações Robert Grim, responsável pelo funcionamento do aplicativo e da instalação HEX, que empresta o nome ao título. Já por volta do segundo capítulo, compreendemos que a cronologia não se inicia com a insurgência da bruxa conhecida como Katherine van Wyler e sua maldição, mas sim convivendo harmonicamente com sua presença indescritível. E detalhe: os moradores da pequena Black Spring vivem em um medo compulsório que os impede de sair dos limites da cidade – caso saiam, são acometidos por desejos suicidas e encontram a morte prematura. 

Dentro de um escopo como este, que atravessa o terror e o suspense, quase tangenciando o mistério, quando vemos que há calmaria demais, é sempre bom duvidar de sua concretude. Vivendo na cidade, há personalidades conturbadas que representam uma crescente ameaça para a paz construída entre o mundo real e o sobrenatural: Tyler, um dos personagens mais bem construídos com um arco muito bem estruturado, é um adolescente de dezessete anos que é movido pela rebeldia e pela irreverência; seus discursos libertários condenam as políticas de aprisionamento forçado da cidade e de mascaramento proposital do que realmente acontece, entrando em conflito com as forças conservadores do conselheiro Colton Mathers e seus auxiliares administrativos. 

Eventualmente, as experiências de Tyler e seus colegas se tornam perigosas para a manutenção da própria vida de seus conterrâneos. Entretanto, mesmo com a possibilidade de uma revolta infernal de Katherine, alguns deles continuam provocando-a, chegando até mesmo a apedrejá-la para mostrar sua impotência. Se analisarmos com uma perspectiva que foge da superficialidade do gênero, podemos encontrar inúmeras críticas até mesmo históricas das quais o autor se dispõe para criar este microcosmos: além das claras alusões verídicas à colonização e à inquisição dos Estados Unidos – nos transportando, por exemplo, para Salem do século XVII -, há referências que perpassam inúmeras escolas literárias, psicológicas e antropológicas que respaldam atitudes absurdas, porém críveis dentro do contexto orquestrado. 

Podemos citar a grande inclinação que Heuvelt faz ao Naturalismo e à corrente de pensamento determinista, as quais lançam o próprio homem ao retorno ao seu estado primitivo, mostrando o quanto influenciável ele se torna em uma conjuntura de caos e medo. Com as tragédias aumentando a um nível incontrolável – ocasionando a morte de várias personas queridas e que não mereciam o fim que encontraram -, a individualidade de Black Spring se perde, dando lugar a uma massa amorfa de ódio e desejo por justiça que na verdade é uma máscara para um traço adormecido de medievalismo puro. 

O encontro entre passado e presente é constante nas páginas do romance: em diversos momentos, a sociedade retorna para um estado de barbárie, questionando as próprias escolhas “democráticas” e que entram em choque ideológico com a preservação da integridade física e psicológica do ser humano. A cidade em questão é uma amálgama perfeita de O Senhor das Moscas’ e Dogville’, trazendo o pior de seus personagens em situações de tensão exacerbada – há uma sequência de tortura em que três adolescente são colocados em praça pública e açoitados inúmeras vezes apenas para serem jogados em confinamento e “aprenderem com seus erros”. Cada uma das cenas é rica em detalhes, afastando-se de uma possível presunção e dando lugar a uma construção que beira o sadismo pornográfico.

‘HEX’ é uma obra explícita, pesada e que, na verdade, não tem objetivo algum de trazer um final feliz, mas mostrar a natureza corruptiva e intrínseca do ser humano – é quase um apelo para torcer para a vitória da bruxa sobre uma onda de atos ridículos e autodestrutivos. E, citando o longa mencionado de Lars von Trier, “Black Spring é uma cidade que simplesmente não precisaria existir”. 

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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