domingo , 22 dezembro , 2024

Mês do Orgulho | A História da Representatividade LGBTQIA+ no Cinema e na Televisão

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Publicado originalmente em 13 de outubro de 2019.

28 de junho de 1969. Stonewall Inn, Nova York.



Já fazia sete anos desde que a homossexualidade havia sido “descriminalizada” – e coloque aspas nisso. Afinal, ainda que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não culminasse em prisões ou pena de morte, a comunidade LGBTQ+ ainda sofria diversos abusos e preconceitos por parte de uma “majoritária” parcela heterossexual e heteronormativa que os observava com descaso e nojo.

Não foi até a uma e vinte da manhã do dia em questão que o movimento queer tornou-se o que conhecemos hoje e mudou inclusive as relações entre esse grupo e como a mídia os representava. Afinal, a brutalidade policial no único e precário bar abertamente gay localizado numa escura viela do Greenwich Village foi a fatídica gota d’água para aqueles que desejam apenas viver – e, desde então, a luta por representatividade ganhou um escopo gigantesco.

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Entretanto, é só agora que o cenário está começando a mudar – e passos bastante curtos, diga-se de passagem. Mesmo com a suposta aceitação por parte de Hollywood e dos outros grande monopólios do entretenimento, é inegável dizer que os LGBTQ+ foram a priori tratados como motivo de chacota, escapes cômicos ou se restringiam a personagens rasos ou estereotipados, transformando-se em personas reais há poucos anos.

Qual foi nossa surpresa quando Moonlight: Sob a Luz do Luar, um drama baseado em fatos reais que reuniu todas as minorias em uma mesma narrativa, levou para casa a estatueta de Melhor Filme na cerimônia do Oscar 2017, e acendeu uma fagulha de esperança. Porém, foram quase cinquenta anos desde a insurgência do movimento contemporâneo até que isso se tornasse verdade – e, apesar do aumento esporádico da diversidade, o buraco é muito mais embaixo do que parece.

1895-1989: O SÉCULO PERDIDO

O cinema surgiu no final do século XIX em duas partes do mundo: na França, com os Irmãos Lumière, e nos Estados Unidos, com Thomas Edison. Desde aquela época, representava-se personagens LGBTs – mas não pense que era da melhor forma possível.

Em The Gay Brothers (1895), Edison criava uma curtíssima narrativa de dezoito segundos que simplesmente dançam ao som pós-introduzido de um violino e que servem mais como escape cômico do que qualquer outra coisa. Em 1923, Ralph Ceder dirigiria outra produção trazendo Stan Laurel como um gay afeminado cujo arco era marcado pela mais “pura” comédia. Sua construção era superficial por demais e restringia a presença queer apenas para tramas desse tipo.

As coisas mudariam consideravelmente algumas décadas mais tarde – para pior. Em 1967, o canal CBC abria seu primeiro segmento televisivo LGBT; mas para aqueles que pensam que o programa era apresentado por membros da comunidade, sinto lhes informar que as pautas funcionavam como compilados de estereótipos negativos do homem gay. Ou seja, além da manutenção de preceitos infundados e vistos como anormalidades, a mídia apagava por completo as lésbicas, os bissexuais e os transgêneros.

Nem tudo estaria condenado a mentiras e a preconceitos. A ABC, em clara resposta ao canal supracitado, criaria um dos primeiros shows de comédia com um personagem homossexual complexo encarnando o protagonista. That Certain Summer (1972) trazia Hal Holbrook e Martin Sheen como um casal que procurava o melhor jeito de criar sua família e o resultado foi a transmissão da série pioneira que simpatizava com os LGBTs. O mesmo aconteceria com The Jeffersons e SOAP (1977), duas sitcoms que abriam espaço para o protagonismo gay.

Porém, as primeiras emissoras americanas ignoravam as mulheres lésbicas. The Rejected (1961) e The Homosexuals (1967), os primeiros documentários gays, excluíam-nas descaradamente, enquanto na mídia ficcional, eram retratadas como serial killers ou então as vítimas. Em 1974, a NBC estreou o episódio ‘Flowers of Evil’ da série documental Police Woman, em que os estereótipos lésbicos ganhavam uma dimensão assustadora ao trazer um trio de mulheres homossexuais (descritas, é época, como a Sapatão, a Vadia e a Femme Fatale) que roubavam e assassinavam os residentes de um asilo. A iteração, recheada de argumentos preconceituosos, foi recebida negativamente pela Associação Liberal Feminista Lésbica, que arquitetou um protesto na frente do quartel-general da emissora.

A partir da década de 1980, com a emergência da AIDS e sua errônea associação à comunidade queer, grande parte dos espectadores promoveram boicote aos filmes e às séries que trouxessem temática LGBT. A entidade responsável por esse embargo era a AFA (Associação da Família Americana), que argumentava que o “estilo de vida homossexual” era decadente. Dessa forma, a já mínima porcentagem representativa cairia drasticamente, mantendo-se dessa forma até o início do século XXI.

OS ANOS 1990: PERPETUANDO OS ESTEREÓTIPOS

Se a década de 1980 ficou conhecida por seu expressivo número de filmes de terror slasher, os próximos dez anos ganhariam fama pela quantidade inefável de comédias românticas ou rom-coms – e, procurando abrir espaço para uma questionável diversidade midiática, trouxe personagens LGBTQ+ dentro das devidas restrições e estereótipos.

As Patricinhas de Beverly Hills e O Casamento do Meu Melhor Amigo são, sem dúvida, clássicos dessa época que até hoje inspiram algumas obras cinematográficas. E enquanto Alicia Silverstone e Julia Roberts se tornavam as queridinhas do público, os gays deveriam se contentar com papéis supérfluos e que falavam explicitamente sobre suas “condições”; porém, suas breves subtramas não poderiam trazer nada muito escandaloso – ou seja, beijos e sexo. Eles funcionavam, na verdade, como máquinas de frases prontas, dicas de moda e referências artísticas para enaltecer a protagonista ou deixá-la mais humana.

O exagero e a tragédia também eram muito comuns – ainda que não fossem encontrados apenas nas rom-coms. Tom Hanks até mesmo levou o Oscar por Filadélfia ao interpretar um jovem lutando contra os efeitos da AIDS e, apesar de trazer um protagonismo relevante, ainda permaneceu numa infeliz zona de conforto. Robin Williams, por sua vez, deu vida ao estereótipo ambulante Armand Goldman em A Gaiola das Loucas – cujo próprio título já nos dá uma ideia do que o filme se trata.

Com a expressiva presença da comunidade trans no âmbito mainstream com a notável ajuda de Madonna e sua apropriação do vogue – criado pelas mulheres transexuais do Harlem e do Brooklyn vinte anos antes -, tais figuras também apareceram em alguns longas-metragens. Entretanto, não do jeito que desejavam.

É ridículo pensar como essas mulheres eram tratadas. Insurgindo como artifícios para reafirmar a masculinidade do macho-alfa das obras fílmicas, as quase inexistentes personagens trans eram o terror dos homens héteros. Obras como Traídos pelo Desejo ainda buscavam fugir das fórmulas, mas “comédias” de mal gosto como Ace Ventura: Um Detetive Diferente caíam em gosto popular por trazerem cenas nas quais uma sala cheia de homens vomitavam ao descobrir que a antagonista era “um homem”. Mulheres transexuais eram frequentemente objetos de escárnio e repulsa, tratadas como criaturas aberrativas nada confiáveis. Até bem-intencionados como To Wong Foo, Thanks for Everything! Julie Newmar’ zombavam dessas complicadas discussões sobre gênero.

De fato, era quase impossível encontrar produções em que LGBTQs se comportassem como qualquer outra pessoa, sendo tratados como alienígenas de outro mundo. Na época supracitada, havia, além dos convencionalismos mencionados, a lésbica rebelde e louca (Mulher Solteira Procura, Instinto Selvagem), o gay psicótico (O Silêncio dos Inocentes), e a lésbica que estava apenas esperando por Ben Affleck (Procura-se Amy, um apagamento total da bissexualidade).

Caso fugissem dessas “regras”, as obras audiovisuais sofriam boicote generalizado. Foi o que aconteceu com a famosa apresentadora de talk show Ellen DeGeneres em 1997, quando se assumiu lésbica em sua sitcom homônima. Apesar do episódio em questão ter levado para casa um Emmy Award, o show foi cancelado uma temporada depois pelos baixos índices de audiência. Ela tentou retornar aos holofotes com The Ellen Show em 2001, mas a CBS cancelou o programa após seu ano de estreia (pelos mesmos motivos).

Entretanto, algumas obras mostravam outros lados do cotidiano LGBTQ+ e davam espaço para a comunidade queer. O icônico documentário Paris Is Burning abriu a década ao trazer sequências gravadas nos anos anteriores e colocar em cena drag queens das classes mais baixas de Nova York; o reality The Real World transmitiu a primeira cerimônia matrimonial homossexual da televisão, além de trazer discussões sobre HIV e AIDS; Roseanne quebrou recordes ao reunir mais de 30 milhões de telespectadores para presenciar o beijo lésbico entre Roseanne Barr e Mariel Hemingway; e até mesmo Friends trouxe um casamento entre duas mulheres com a presença de Carol (Jane Sibbett) e Susan (Jessica Hecht), ainda que não selassem seus votos com o tradicional beijo.

Will & Grace, sitcom da NBC indicada a mais de 80 prêmios, livrava-se de grande parte dos estereótipos quando trouxe dois homens gays como protagonistas – um deles trabalhando como advogado – e, nas palavras do vice-presidente da emissora Joseph R. Biden Jr., “fez mais para educar o público do que praticamente todo mundo havia feito até então”.

2000-2019: A VISIBILIDADE AUMENTA

Com a chegada dos anos 2000, a presença queer era bastante considerável na televisão e no cinema. A Showtime tornou-se pioneira ao inaugurar o primeiro drama de uma hora de duração com Queer as Folk, uma série com elenco majoritariamente homossexual (tanto com gays quanto com lésbicas). Anos depois, a emissora voltaria a fazer história com The L Word, cuja narrativa girava em torno de um grupo de amigas lésbicas e bissexuais – dando-lhes o espaço renegado nas décadas anteriores.

É claro que alguns programas ainda cediam a certos estereótipos. Desperate Housewives, da ABC, introduziu um personagem gay em suas primeiras temporadas com Andrew, filho de Bree. Aqui, o criador Marc Cherry fez grande questão em explorar temas familiares e que, eventualmente, culminavam em um final feliz no qual a conservadora mãe o aceitava de braços abertos. Entretanto, por outro lado, a série perpetuou estereótipos com o extremista casal formado por Bob e Lee, e a “ex-lésbica” Katherine Mayfair.

Entretanto, é inegável dizer que a comunidade começou a ganhar um delicioso protagonismo que não se exilava apenas em histórias água com açúcar, e sim que viajam entre diversas décadas como forma de reparação histórica. Apenas nos primeiros anos do novo milênio, longas como ‘O Segredo de Brokeback Mountain’, De Irmão Pra Irmão, ‘Hedwig – Rock, Amor e Traição’ e Milk: A Voz da Igualdade mostravam vários outros gêneros que não a comédia romântica que tinham capacidade e habilidade para exaltar a diversidade de personalidades LGBTQ+.

Com o passar dos anos, o movimento queer aumentaria exponencialmente – e sua presença nas maiores indústrias fonográficas seguiria o mesmo padrão. Cate Blanchett e Rooney Mara viveriam um romance lésbico na década de 1950 com Carol; Colin Firth lidaria com sua sexualidade no drama Direito de Amar; Com Amor Simon ganharia uma crível rom-com liderada por Nick Robinson; e até mesmo séries animadas se renderiam a essa tão necessária representatividade (como Superdrags e Steven Universo).

Segundo a pesquisa promulgada pela organização GLAAD, 2018 seria o ano em que a televisão disponibilizaria a maior porcentagem de obras lideradas por personagens LGBTQ+. O número de bissexuais protagonistas aumentaria de 18% em 2017 para 33%; a gigante do streaming Netflix seria a principal plataforma com esse tipo de produções, incluindo shows de humor ácido como BoJack Horseman, a série não-ficcional Queer Eye e a compra dos direitos do reality RuPaul’s Drag Race para exibição internacional.

No cinema, as coisas não seriam muito parecidas. Pesquisas indicaram que, no ano passado, apenas 12,8% dos 109 maiores filmes incluiriam um personagem queer, contra 18,4% de 2017. E, mesmo assim, os papéis seriam insuficientes, ou seja, com breves menções – como a governante Georgina, de Corra!’ e os dois supostos personagens gays de Alien: Covenant.

É necessário dizer que nem tudo são flores e que a LGBTfobia ainda permanece, mesmo de forma velada: os estereótipos de gênero se mantêm com expressiva voz como, por exemplo, a fetichização de personagens lésbicas com as últimas temporadas de Friends e o aclamado ‘Azul É a Cor Mais Quente’ e a superestimação do corpo “perfeito” de diversas produções – como os coadjuvantes queer de American Gods. A heteronormatividade também configurou-se como uma problemática social que continua a desmerecer principalmente gays afeminados, colocando-os em papéis secundários ou em pouquíssimas posições de destaque (uma das exceções, por exemplo, é ‘Sex Education’).

Mesmo com o aumento em questão, as esferas cinematográfica e televisiva insistem em cometer erros bastante condenáveis – e um deles é visto desde os primórdios da expansão do entretenimento: a falta de diversidade racial.

A QUESTÃO RACIAL

Os anos 1990 trouxeram um crescimento interessante, ainda que paradoxal, para personagens queer em produções mainstream. Apesar da representação de personagens de cor ter aumentado também, a maior parte dos protagonistas e até mesmo coadjuvantes sempre se restringiu a homens gays brancos.

As primeiras reportagens do GLAAD (mencionado acima) acerca da responsabilidade histórica dos estúdios, indicaram que, dos 101 grandes filmes lançados em 2012, apenas 14 traziam personagens LGBTs. Dentro deles, 31 se identificavam com algum gênero/orientação sexual que diferia dos heterossexuais e, entre eles, apenas quatro eram afrodescendentes. Em 2016, nove dos personagens queer eram negros.

Além disso, tais personas se mantinham presas a outros estereótipos: os gays negros eram normalmente representados como afeminados bastante agressivos – como Keith Charles na série Six Feet Under. Lafayette Reynolds, que apareceu em True Blood, tangenciava esses convencionalismos. Já as lésbicas negras eram associadas ao erotismo, ao exótico (as femmes) e as masculinizadas (as butches). No thriller Até As Últimas Consequências, a personagem Ursula (Samantha MacLachlan) é vista apenas como objeto sexual, enquanto Cleo (Queen Latifah) é enxergada como o “homem da relação” e extremamente violenta.

Em outra perspectiva, as mulheres transexuais são tipicamente encarnadas como pessoas passivas no meio de outras mulheres, incluindo lésbicas. No geral, são retratadas de modo artificial, desproporcional e alvos dos mais variados tipos de preconceito que renegam sua existência. A série Orange Is the New Black utiliza tais temas para explorar os estereótipos como forma de conscientização – afinal, Sophia Burset (Laverne Cox) é uma detenta da penitenciária de Litchfield assediada o tempo todo por suas “colegas”. Como resultado, as representações em questão também auxiliam para perpetuar ideias infundadas de que os negros são pobres, agressivos e/ou usuários de drogas.

Não foi até os últimos anos da década de 2010 que o cenário realmente começou a mudar. Ryan Murphy fez história ao criar Pose, a obra audiovisual com maior elenco transgênero e negro da história e que tornou-se uma das séries mais aclamadas de todos os tempos ao retratar a vida da comunidade LGBTQ+ nas décadas de 1980 e 1990. O show, inclusive, foi responsável pelo aumento exponencial da porcentagem de pessoas de cor em grandes produções: 50% contra 49% brancos.

O auge da luta contra a disparidade racial viria, como mencionado no início dessa matéria, com Moonlight: Sob a Luz do Luar. A trama, ambientada em Liberty City, Miami, traria o jovem Chiron lidando com a descoberta de sua orientação sexual enquanto um rapaz pobre e negro num cenário caótico, no qual era obrigado a lidar com sua mãe viciada em drogas e os múltiplos preconceitos que sofreria até a vida adulta. O resultado foi um belíssimo e comovente coming-of-age vencedor de três estatuetas do Oscar – incluindo o prêmio de Melhor Filme.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Mês do Orgulho | A História da Representatividade LGBTQIA+ no Cinema e na Televisão

Publicado originalmente em 13 de outubro de 2019.

28 de junho de 1969. Stonewall Inn, Nova York.

Já fazia sete anos desde que a homossexualidade havia sido “descriminalizada” – e coloque aspas nisso. Afinal, ainda que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não culminasse em prisões ou pena de morte, a comunidade LGBTQ+ ainda sofria diversos abusos e preconceitos por parte de uma “majoritária” parcela heterossexual e heteronormativa que os observava com descaso e nojo.

Não foi até a uma e vinte da manhã do dia em questão que o movimento queer tornou-se o que conhecemos hoje e mudou inclusive as relações entre esse grupo e como a mídia os representava. Afinal, a brutalidade policial no único e precário bar abertamente gay localizado numa escura viela do Greenwich Village foi a fatídica gota d’água para aqueles que desejam apenas viver – e, desde então, a luta por representatividade ganhou um escopo gigantesco.

Entretanto, é só agora que o cenário está começando a mudar – e passos bastante curtos, diga-se de passagem. Mesmo com a suposta aceitação por parte de Hollywood e dos outros grande monopólios do entretenimento, é inegável dizer que os LGBTQ+ foram a priori tratados como motivo de chacota, escapes cômicos ou se restringiam a personagens rasos ou estereotipados, transformando-se em personas reais há poucos anos.

Qual foi nossa surpresa quando Moonlight: Sob a Luz do Luar, um drama baseado em fatos reais que reuniu todas as minorias em uma mesma narrativa, levou para casa a estatueta de Melhor Filme na cerimônia do Oscar 2017, e acendeu uma fagulha de esperança. Porém, foram quase cinquenta anos desde a insurgência do movimento contemporâneo até que isso se tornasse verdade – e, apesar do aumento esporádico da diversidade, o buraco é muito mais embaixo do que parece.

1895-1989: O SÉCULO PERDIDO

O cinema surgiu no final do século XIX em duas partes do mundo: na França, com os Irmãos Lumière, e nos Estados Unidos, com Thomas Edison. Desde aquela época, representava-se personagens LGBTs – mas não pense que era da melhor forma possível.

Em The Gay Brothers (1895), Edison criava uma curtíssima narrativa de dezoito segundos que simplesmente dançam ao som pós-introduzido de um violino e que servem mais como escape cômico do que qualquer outra coisa. Em 1923, Ralph Ceder dirigiria outra produção trazendo Stan Laurel como um gay afeminado cujo arco era marcado pela mais “pura” comédia. Sua construção era superficial por demais e restringia a presença queer apenas para tramas desse tipo.

As coisas mudariam consideravelmente algumas décadas mais tarde – para pior. Em 1967, o canal CBC abria seu primeiro segmento televisivo LGBT; mas para aqueles que pensam que o programa era apresentado por membros da comunidade, sinto lhes informar que as pautas funcionavam como compilados de estereótipos negativos do homem gay. Ou seja, além da manutenção de preceitos infundados e vistos como anormalidades, a mídia apagava por completo as lésbicas, os bissexuais e os transgêneros.

Nem tudo estaria condenado a mentiras e a preconceitos. A ABC, em clara resposta ao canal supracitado, criaria um dos primeiros shows de comédia com um personagem homossexual complexo encarnando o protagonista. That Certain Summer (1972) trazia Hal Holbrook e Martin Sheen como um casal que procurava o melhor jeito de criar sua família e o resultado foi a transmissão da série pioneira que simpatizava com os LGBTs. O mesmo aconteceria com The Jeffersons e SOAP (1977), duas sitcoms que abriam espaço para o protagonismo gay.

Porém, as primeiras emissoras americanas ignoravam as mulheres lésbicas. The Rejected (1961) e The Homosexuals (1967), os primeiros documentários gays, excluíam-nas descaradamente, enquanto na mídia ficcional, eram retratadas como serial killers ou então as vítimas. Em 1974, a NBC estreou o episódio ‘Flowers of Evil’ da série documental Police Woman, em que os estereótipos lésbicos ganhavam uma dimensão assustadora ao trazer um trio de mulheres homossexuais (descritas, é época, como a Sapatão, a Vadia e a Femme Fatale) que roubavam e assassinavam os residentes de um asilo. A iteração, recheada de argumentos preconceituosos, foi recebida negativamente pela Associação Liberal Feminista Lésbica, que arquitetou um protesto na frente do quartel-general da emissora.

A partir da década de 1980, com a emergência da AIDS e sua errônea associação à comunidade queer, grande parte dos espectadores promoveram boicote aos filmes e às séries que trouxessem temática LGBT. A entidade responsável por esse embargo era a AFA (Associação da Família Americana), que argumentava que o “estilo de vida homossexual” era decadente. Dessa forma, a já mínima porcentagem representativa cairia drasticamente, mantendo-se dessa forma até o início do século XXI.

OS ANOS 1990: PERPETUANDO OS ESTEREÓTIPOS

Se a década de 1980 ficou conhecida por seu expressivo número de filmes de terror slasher, os próximos dez anos ganhariam fama pela quantidade inefável de comédias românticas ou rom-coms – e, procurando abrir espaço para uma questionável diversidade midiática, trouxe personagens LGBTQ+ dentro das devidas restrições e estereótipos.

As Patricinhas de Beverly Hills e O Casamento do Meu Melhor Amigo são, sem dúvida, clássicos dessa época que até hoje inspiram algumas obras cinematográficas. E enquanto Alicia Silverstone e Julia Roberts se tornavam as queridinhas do público, os gays deveriam se contentar com papéis supérfluos e que falavam explicitamente sobre suas “condições”; porém, suas breves subtramas não poderiam trazer nada muito escandaloso – ou seja, beijos e sexo. Eles funcionavam, na verdade, como máquinas de frases prontas, dicas de moda e referências artísticas para enaltecer a protagonista ou deixá-la mais humana.

O exagero e a tragédia também eram muito comuns – ainda que não fossem encontrados apenas nas rom-coms. Tom Hanks até mesmo levou o Oscar por Filadélfia ao interpretar um jovem lutando contra os efeitos da AIDS e, apesar de trazer um protagonismo relevante, ainda permaneceu numa infeliz zona de conforto. Robin Williams, por sua vez, deu vida ao estereótipo ambulante Armand Goldman em A Gaiola das Loucas – cujo próprio título já nos dá uma ideia do que o filme se trata.

Com a expressiva presença da comunidade trans no âmbito mainstream com a notável ajuda de Madonna e sua apropriação do vogue – criado pelas mulheres transexuais do Harlem e do Brooklyn vinte anos antes -, tais figuras também apareceram em alguns longas-metragens. Entretanto, não do jeito que desejavam.

É ridículo pensar como essas mulheres eram tratadas. Insurgindo como artifícios para reafirmar a masculinidade do macho-alfa das obras fílmicas, as quase inexistentes personagens trans eram o terror dos homens héteros. Obras como Traídos pelo Desejo ainda buscavam fugir das fórmulas, mas “comédias” de mal gosto como Ace Ventura: Um Detetive Diferente caíam em gosto popular por trazerem cenas nas quais uma sala cheia de homens vomitavam ao descobrir que a antagonista era “um homem”. Mulheres transexuais eram frequentemente objetos de escárnio e repulsa, tratadas como criaturas aberrativas nada confiáveis. Até bem-intencionados como To Wong Foo, Thanks for Everything! Julie Newmar’ zombavam dessas complicadas discussões sobre gênero.

De fato, era quase impossível encontrar produções em que LGBTQs se comportassem como qualquer outra pessoa, sendo tratados como alienígenas de outro mundo. Na época supracitada, havia, além dos convencionalismos mencionados, a lésbica rebelde e louca (Mulher Solteira Procura, Instinto Selvagem), o gay psicótico (O Silêncio dos Inocentes), e a lésbica que estava apenas esperando por Ben Affleck (Procura-se Amy, um apagamento total da bissexualidade).

Caso fugissem dessas “regras”, as obras audiovisuais sofriam boicote generalizado. Foi o que aconteceu com a famosa apresentadora de talk show Ellen DeGeneres em 1997, quando se assumiu lésbica em sua sitcom homônima. Apesar do episódio em questão ter levado para casa um Emmy Award, o show foi cancelado uma temporada depois pelos baixos índices de audiência. Ela tentou retornar aos holofotes com The Ellen Show em 2001, mas a CBS cancelou o programa após seu ano de estreia (pelos mesmos motivos).

Entretanto, algumas obras mostravam outros lados do cotidiano LGBTQ+ e davam espaço para a comunidade queer. O icônico documentário Paris Is Burning abriu a década ao trazer sequências gravadas nos anos anteriores e colocar em cena drag queens das classes mais baixas de Nova York; o reality The Real World transmitiu a primeira cerimônia matrimonial homossexual da televisão, além de trazer discussões sobre HIV e AIDS; Roseanne quebrou recordes ao reunir mais de 30 milhões de telespectadores para presenciar o beijo lésbico entre Roseanne Barr e Mariel Hemingway; e até mesmo Friends trouxe um casamento entre duas mulheres com a presença de Carol (Jane Sibbett) e Susan (Jessica Hecht), ainda que não selassem seus votos com o tradicional beijo.

Will & Grace, sitcom da NBC indicada a mais de 80 prêmios, livrava-se de grande parte dos estereótipos quando trouxe dois homens gays como protagonistas – um deles trabalhando como advogado – e, nas palavras do vice-presidente da emissora Joseph R. Biden Jr., “fez mais para educar o público do que praticamente todo mundo havia feito até então”.

2000-2019: A VISIBILIDADE AUMENTA

Com a chegada dos anos 2000, a presença queer era bastante considerável na televisão e no cinema. A Showtime tornou-se pioneira ao inaugurar o primeiro drama de uma hora de duração com Queer as Folk, uma série com elenco majoritariamente homossexual (tanto com gays quanto com lésbicas). Anos depois, a emissora voltaria a fazer história com The L Word, cuja narrativa girava em torno de um grupo de amigas lésbicas e bissexuais – dando-lhes o espaço renegado nas décadas anteriores.

É claro que alguns programas ainda cediam a certos estereótipos. Desperate Housewives, da ABC, introduziu um personagem gay em suas primeiras temporadas com Andrew, filho de Bree. Aqui, o criador Marc Cherry fez grande questão em explorar temas familiares e que, eventualmente, culminavam em um final feliz no qual a conservadora mãe o aceitava de braços abertos. Entretanto, por outro lado, a série perpetuou estereótipos com o extremista casal formado por Bob e Lee, e a “ex-lésbica” Katherine Mayfair.

Entretanto, é inegável dizer que a comunidade começou a ganhar um delicioso protagonismo que não se exilava apenas em histórias água com açúcar, e sim que viajam entre diversas décadas como forma de reparação histórica. Apenas nos primeiros anos do novo milênio, longas como ‘O Segredo de Brokeback Mountain’, De Irmão Pra Irmão, ‘Hedwig – Rock, Amor e Traição’ e Milk: A Voz da Igualdade mostravam vários outros gêneros que não a comédia romântica que tinham capacidade e habilidade para exaltar a diversidade de personalidades LGBTQ+.

Com o passar dos anos, o movimento queer aumentaria exponencialmente – e sua presença nas maiores indústrias fonográficas seguiria o mesmo padrão. Cate Blanchett e Rooney Mara viveriam um romance lésbico na década de 1950 com Carol; Colin Firth lidaria com sua sexualidade no drama Direito de Amar; Com Amor Simon ganharia uma crível rom-com liderada por Nick Robinson; e até mesmo séries animadas se renderiam a essa tão necessária representatividade (como Superdrags e Steven Universo).

Segundo a pesquisa promulgada pela organização GLAAD, 2018 seria o ano em que a televisão disponibilizaria a maior porcentagem de obras lideradas por personagens LGBTQ+. O número de bissexuais protagonistas aumentaria de 18% em 2017 para 33%; a gigante do streaming Netflix seria a principal plataforma com esse tipo de produções, incluindo shows de humor ácido como BoJack Horseman, a série não-ficcional Queer Eye e a compra dos direitos do reality RuPaul’s Drag Race para exibição internacional.

No cinema, as coisas não seriam muito parecidas. Pesquisas indicaram que, no ano passado, apenas 12,8% dos 109 maiores filmes incluiriam um personagem queer, contra 18,4% de 2017. E, mesmo assim, os papéis seriam insuficientes, ou seja, com breves menções – como a governante Georgina, de Corra!’ e os dois supostos personagens gays de Alien: Covenant.

É necessário dizer que nem tudo são flores e que a LGBTfobia ainda permanece, mesmo de forma velada: os estereótipos de gênero se mantêm com expressiva voz como, por exemplo, a fetichização de personagens lésbicas com as últimas temporadas de Friends e o aclamado ‘Azul É a Cor Mais Quente’ e a superestimação do corpo “perfeito” de diversas produções – como os coadjuvantes queer de American Gods. A heteronormatividade também configurou-se como uma problemática social que continua a desmerecer principalmente gays afeminados, colocando-os em papéis secundários ou em pouquíssimas posições de destaque (uma das exceções, por exemplo, é ‘Sex Education’).

Mesmo com o aumento em questão, as esferas cinematográfica e televisiva insistem em cometer erros bastante condenáveis – e um deles é visto desde os primórdios da expansão do entretenimento: a falta de diversidade racial.

A QUESTÃO RACIAL

Os anos 1990 trouxeram um crescimento interessante, ainda que paradoxal, para personagens queer em produções mainstream. Apesar da representação de personagens de cor ter aumentado também, a maior parte dos protagonistas e até mesmo coadjuvantes sempre se restringiu a homens gays brancos.

As primeiras reportagens do GLAAD (mencionado acima) acerca da responsabilidade histórica dos estúdios, indicaram que, dos 101 grandes filmes lançados em 2012, apenas 14 traziam personagens LGBTs. Dentro deles, 31 se identificavam com algum gênero/orientação sexual que diferia dos heterossexuais e, entre eles, apenas quatro eram afrodescendentes. Em 2016, nove dos personagens queer eram negros.

Além disso, tais personas se mantinham presas a outros estereótipos: os gays negros eram normalmente representados como afeminados bastante agressivos – como Keith Charles na série Six Feet Under. Lafayette Reynolds, que apareceu em True Blood, tangenciava esses convencionalismos. Já as lésbicas negras eram associadas ao erotismo, ao exótico (as femmes) e as masculinizadas (as butches). No thriller Até As Últimas Consequências, a personagem Ursula (Samantha MacLachlan) é vista apenas como objeto sexual, enquanto Cleo (Queen Latifah) é enxergada como o “homem da relação” e extremamente violenta.

Em outra perspectiva, as mulheres transexuais são tipicamente encarnadas como pessoas passivas no meio de outras mulheres, incluindo lésbicas. No geral, são retratadas de modo artificial, desproporcional e alvos dos mais variados tipos de preconceito que renegam sua existência. A série Orange Is the New Black utiliza tais temas para explorar os estereótipos como forma de conscientização – afinal, Sophia Burset (Laverne Cox) é uma detenta da penitenciária de Litchfield assediada o tempo todo por suas “colegas”. Como resultado, as representações em questão também auxiliam para perpetuar ideias infundadas de que os negros são pobres, agressivos e/ou usuários de drogas.

Não foi até os últimos anos da década de 2010 que o cenário realmente começou a mudar. Ryan Murphy fez história ao criar Pose, a obra audiovisual com maior elenco transgênero e negro da história e que tornou-se uma das séries mais aclamadas de todos os tempos ao retratar a vida da comunidade LGBTQ+ nas décadas de 1980 e 1990. O show, inclusive, foi responsável pelo aumento exponencial da porcentagem de pessoas de cor em grandes produções: 50% contra 49% brancos.

O auge da luta contra a disparidade racial viria, como mencionado no início dessa matéria, com Moonlight: Sob a Luz do Luar. A trama, ambientada em Liberty City, Miami, traria o jovem Chiron lidando com a descoberta de sua orientação sexual enquanto um rapaz pobre e negro num cenário caótico, no qual era obrigado a lidar com sua mãe viciada em drogas e os múltiplos preconceitos que sofreria até a vida adulta. O resultado foi um belíssimo e comovente coming-of-age vencedor de três estatuetas do Oscar – incluindo o prêmio de Melhor Filme.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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