Cada vez mais próxima, aposentadoria do cineasta é uma conclusão importante para uma enorme carreira
Durante uma conversa virtual no Festival Internacional de Cinema de Kerala, o diretor Jean-Luc Godard anunciou que irá se aposentar após concluir seus dois próximos roteiros. Em 2019 foi concedida por Godard uma entrevista para a revista francesa Les Inrockuptibles na qual, ao ser questionado se estava desenvolvendo um novo projeto, ele explicou que seu próximo filme “contará a história de uma mulher com traje amarelo que termina com seu namorado. A temática é inspirada em Bérénice (peça de Jean Racine). O personagem traz à mente Bérénice quando Titus retorna ao estado”, explica o diretor.
A carreira de Godard é do tipo que está arraigada na história do cinema contemporâneo. Figurinha carimbada do audiovisual francês a partir da segunda metade do século XX, ele começou sua filmografia em 1955 com uma série de curtas até lançar seu primeiro longa de fato, em 1960, intitulado À Bout de Souffle (ficando como Acossado na tradução). Ao lado de nomes como François Truffaut, Àgnes Varda e Jacques Rivette ele deu início ao movimento cinematográfico mais influente da década de 60: a Nouvelle Vague (nova onda).
De início o movimento nada mais era do que uma iniciativa não organizada de entusiastas do cinema em querer fazer, pura e simplesmente, cinema. Grande parte deles, Godard se encaixando no perfil, era oriunda de publicações relacionadas à sétima arte como a Cahiers du Cinéma. Tendo eles crescido na França do pós Segunda Guerra, suas noções do que era cinema e, mais importante, como fazer cinema era muito ligada ao modelo hollywoodiano graças a facilidade de acesso.
Não havia, até então, um conceito unitário de cinema francês e a ocupação alemã de 1940 até 1944 não permitia brechas para o surgimento de novas técnicas ou movimentos cinematográficos para solidificar essa identidade; o monopólio do mercado pelas produções alemães também se tornou um grande problema.
No artigo The Postwar French Cinema de Georges Sadoul é apontado que mesmo após o fim da guerra a indústria francesa precisou se adaptar a um sistema de cotas que lhe foi impelido. “A programação de cinemas franceses agora precisava incluir pelo menos 31% de filmes domésticos, porém não havia limitação para o número de filmes estrangeiros a serem importados.”
O termo “Nouvelle Vague” não foi cunhado de imediato, sendo proposto apenas em 1958 pelo editor-chefe da revista Cinéma 58, Pierre Billard, para identificar um fenômeno que estava se iniciando no cinema nacional de uma nova onda de filmes franceses realizados por uma nova geração cineastas. A popularização dele veio apenas em 1959, com o sucesso do filme Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups) de François Truffaut.
O próprio Truffaut em 1962, conforme é dito no artigo Nouvelle Vague de Michel Marie, ressaltou a natureza pouco unificada que permeou o movimento. “Não nos cansávamos de dizer que a Nouvelle Vague não é um movimento, nem um grupo, é uma quantidade, é uma apelação coletiva inventada pela imprensa para agrupar cinquenta novos nomes que emergiram em dois anos em uma profissão que não se aceitava mais do que três ou quatro nomes novos todos os anos”.
De qualquer maneira o novo estilo cinematográfico, identificado desde o início como um movimento liderado por jovens, quebra as regras estabelecidas desde os anos 30 pela geração de cineastas franceses predecessores no que consta a como realizar um filme. Talvez poucos ou até nenhum texto foi tão crítico ao modelo vigente quanto a dissertação Une certaine tendance du cinéma français também da autoria de François Truffaut para a Cahiers du Cinéma em 1954; nesse espaço o então jovem crítico e cineasta questiona o porquê de “ser cinema” representar apenas os materiais que seguiam essa cartilha e não tudo aquilo que variava.
A Nouvelle Vague chegou com a proposta de mostrar personagens e histórias mais humanizadas, com o véu do fantástico retirado e que retratassem o amor que esses realizadores tinham pelo cinema. Com Acossado, Godard apresentou as desventuras de um ladrão de carros que se inspirava em estilo ao ator Humprey Bogart. Com Os Incompreendidos o diretor François Truffaut inicia a saga de cinco filmes do jovem Antoine, enquanto se descobre como ser humano, onde ele lida com problemas domésticos, comete delitos e amadurece de uma forma ou de outra.
A grande questão, ao final de tudo, foi que esse movimento trouxe à tona a ebulição jovem nos diferentes âmbitos da cultura, política e sociedade que se iniciou nos anos 50 e foi um tema importante durante todo os anos 60. Por mais que esses filmes tivessem histórias e conduções diferentes eles partilhavam elementos, planejadamente ou não, em comum: jovens que tomavam decisões erradas, paixão física nem sempre romantizada, figuras de autoridade que impõe sentimentos hostis e o cinema constantemente referenciado como um elemento importante da convivência social bem como algo bastante íntimo para os personagens.