sexta-feira, abril 26, 2024

Opinião | Não, a Disney não está acabando com a sua infância – ainda mais porque você já tem 30 anos

Nos últimos meses, a Walt Disney Studios e a Pixar anunciaram que colocarão a primeira personagem abertamente lésbica na vindoura animação ‘Lightyear’, que contará a origem do adorado patrulheiro espacial Buzz Lightyear, da franquia ‘Toy Story’. E é claro que não demorou muito até a parcela mais tradicionalista e retrógrada da sociedade começasse a utilizar frágeis e superficiais argumentos para condenar a atitude dos estúdios em fornecer o mínimo de representatividade às suas histórias.

“Isso não é de Deus”, “vão doutrinar as nossas crianças” e “quem lacra não lucra” foram algumas das várias frases repetitivas que vi espalhadas pelos comentários de várias publicações – com um respaldo argumentativo tão fraco quanto achar que uma personagem é capaz de influenciar alguém. E, eventualmente, não há explicação que justifique canalizar tanto ódio para uma minoria social que, desde sempre, vem lutando para alcançar os mesmos direitos que as pessoas cis-heterossexuais sempre tiveram.

Enquanto a comunidade LGBTQIA+ sempre existiu (é só olharmos para a Antiguidade clássica e observar o comportamento das sociedades da época), a representação queer no cinema e na televisão nunca foi considerável o suficiente para respeitar e analisar a complexidade do planeta em que vivemos e compreender que a configuração forçosamente deliberada pelo patriarcado capitalista não é a única – afinal, existem outras formas de amor e de família que, em pleno século XXI, permanecem como alvo de críticas por preconceituosos que não conseguem enxergar além do próprio umbigo. Nos anos 1990, por exemplo, o mainstream perpetuou estereótipos iniciados década atrás ao invisibilizar a mulher lésbica e tratar o homem gay como coadjuvante da própria vida, dependente dos protagonistas a quem nunca se igualaria. Não foi até o final da década passada que tivemos um expressivo aumento em enredos LGBTQIA+, com o lançamento de ‘Pose’ (contendo o maior elenco trans de todos os tempos) ou de ‘Moonlight: Sob a Luz do Luar’ (que inclusive levou o Oscar de Melhor Filme para casa).

Então por que não levar essa mínima expressividade às animações infantis?

Dizer que, ao mostrar personagens gays, lésbicas ou trans em produções desse gênero, estaríamos doutrinando as crianças é pura bobagem e não tem qualquer solidez científica. Afinal, este que vos fala cresceu vendo casais heterossexuais trocando carícias em obras como ‘Aladdin’, ‘A Pequena Sereia’ e ‘A Bela e Fera’ – e isso não me “tornou” um homem hétero (aliás, tornar-se LGBTQIA+ não é uma coisa que existe, visto que nascemos assim). É claro que o cérebro das crianças é bem mais plástico que o dos adultos e, por essa razão, demonstrar a pluralidade é um ótimo jeito de impedir que elas virem pessoas intolerantes. A orientação sexual independe do número de inputs que recebemos ao longo da vida, pelo simples fato de nascermos assim – o que existe, e isso é um fato, é um processo de autoaceitação e consequente revelação pelos quais ainda passamos, com medo de sermos marginalizados por aqueles que amamos.

E, se estamos falando dessa suposta ideologia de doutrinação, podemos analisar a problemática das inúmeras animações da Disney do início do século XX e a problemática do próprio beijo trocado entre personagens heterossexuais. Temos o beijo não-consensual em ‘Branca de Neve e os Sete Anões’ e ‘A Bela Adormecida’, em que o príncipe e a princesa nem sequer tinham afinidade o suficiente para declarar amor verdadeiro um pelo outro; temos o abandono de sonhos em prol de uma submissão ultrarromântica em ‘A Pequena Sereia’, em que Ariel abandona a família e se envolve com uma perigosa bruxa do mar apenas para ficar com um homem que acabou de conhecer; e, se há uma reclamação tão contundente sobre “beijo gay” ou “beijo lésbico” (uma terminologia que também não faz o menor sentido), por que grande parte da sociedade é condescendente com a demonstração de carinho quando o casal em questão é heterossexual? Ou pior: por que essa mesma parcela romantiza relacionamentos entre crianças, como Cebolinha e Mônica em ‘Turma da Mônica’, ou até mesmo Mike e Eleven na temporada de estreia de ‘Stranger Things’?

A religião também é vista como argumento pela comunidade tradicionalista cristã-católica – e só por eles, visto que disposições religiosas são completamente refutáveis, considerando o número infinito de fés que se alastram pelo planeta. Há uma constante depreciadora de que gays, lésbicas, bissexuais e trans fogem à “criação de Deus” – mas até onde isso pode ser utilizado como mote de vida quando negamos a existência de outrem? E até onde isso pode ser usado como máxima quando nem todos seguem a mesma religião que a sua?

Não deixe de assistir:

Para você que lê este artigo, as perguntas feitas nos parágrafos acima são retóricas e não requerem respostas, apenas reflexões sobre a hipocrisia destilada por quem sequer sabe o significado da palavra empatia. Tivemos casos recentes de preconceitos raciais envolvendo animações como ‘Moana – Um Mar de Aventuras’, ‘Encanto’ e ‘Raya e o Último Dragão’, em que o protagonismo de personagens femininas brancas foi deixado de lado para celebrar a diversidade étnica do Sudeste Asiático, da Polinésia Francesa e da Colômbia (mesmo assim com certas controvérsias estilísticas que foram apontadas por esses mesmos grupos). Ao que tudo indica, nada que foge da normatização imposta pelos opressores pode chegar ao mainstream – sendo que inúmeros jovens tiveram a oportunidade de se verem representadas nas histórias cinematográficas e televisivas.

Querendo ou não, crianças LGBTQIA+ existem e vão continuar existindo; fornecer o mínimo de representatividade a elas não é “destruir a infância” de marmanjos que não entendem que já tem trinta anos e que deveriam aprender que suas realidades não são as únicas, e sim um apelo emocional para elas compreenderem que não estão sozinhas e que também têm o direito de serem quem são. E, se você permanece atado tão fortemente à nostalgia e se recusa a ver que o mundo evolui, aqui vai um conselho: não assista ao filme.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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