Alfred Hitchcock não continua como um dos maiores cineastas de todos os tempos por qualquer motivo: ao longo de sua prestigiada carreira, o realizador eternizou obras-primas do terror e do suspense com técnicas inovadoras de filmagem e um comprometimento com a sinestesia atmosférica de maneira invejável e que, até os dias de hoje, são homenageadas em diversas produções contemporâneas. Apenas a encargo de exemplificação, Hitchcock é o nome responsável por clássicos como ‘Psicose’, ‘Janela Indiscreta’, ‘Os Pássaros’, ‘Disque M para Matar’ e inúmeros outros – mas, certamente, uma de suas melhores construções é o ovacionado thriller psicológico ‘Um Corpo que Cai’.
Lançado em 1958 e baseado no romance ‘D’entre les morts’, de Boileau-Narcejac, a trama acompanha John “Scottie” Ferguson (James Stewart em uma de suas melhores performances), um detetive aposentado que sofre de acrofobia e que se afastou de seus deveres como oficial de justiça após se sentir responsável pela morte de um policial durante uma perseguição. Porém, ele volta à ativa quando um conhecido de longa data, Gavin Elster (Tom Helmore), pede para que Scottie investigue sua esposa, a bela Madeleine Elster (Kim Novak), cujo comportamento estranho o está assustando. Relutante a princípio, o detetive assume o caso e se vê envolto em uma rede de mistérios que borra a linha entre a realidade e o sobrenatural – culminando em uma reviravolta de tirar o fôlego e que volta a sagrar o impacto de Hitchcock no gênero em questão.
O longa divide-se em dois núcleos a serem acompanhados, divididos com maestria pelos roteiristas Alec Coppel e Samuel Taylor: de um lado, temos a fobia ainda não tratada de Scottie, que personifica-se tanto como incidente incitante quanto personagem; de outro, a crescente obsessão de Scottie não apenas por entender o que está acontecendo com Madeleine, mas também por, gradativamente, se apaixonar pela esposa de um amigo que lhe confiou tal missão. Não é surpresa que, em determinado momento, o detetive se despede da armadura investigativa que fomentou sua fama e se deixa levar por emoções primitivas que se tornam castigáveis à medida que percebe que não conseguirá salvar a mulher pela qual se apaixonou da derradeira loucura – dançando entre a sanidade e a loucura em um descompasso que apenas faz voltar problemas de um passado não muito distante.
Como vemos, o filme é centrado essencialmente em Scottie, protagonizando uma espécie de esfera coadjuvante quando colocado sob a sombra de Madeleine e dos obstáculos que enfrenta. Nesse quesito, Hitchcock arquiteta cada uma das sequências para garantir o máximo de aproveitamento por parte dos espectadores. Ora, não é à toa que o cineasta tenha se aproveitado do advento do formato VistaVision para expandir a experiência cinematográfica – além de popularizar o “efeito Vertigo” (em homenagem ao título original da obra) com uma proposital distorção de perspectiva e sensação constante de desorientação. Afinal, a ideia é transpassar os sentimentos do personagem principal, permitindo que entremos em sua mente e sejamos impactados por cada uma das viradas no enredo.
Se as investidas técnicas são irretocáveis, a cereja do bolo vem com o trabalho esplendoroso do elenco. Como mencionado alguns parágrafos acima, Stewart mergulha em uma das melhores performances de sua extensa e conhecida carreira, trazendo o charme da Old Hollywood em uma roupagem contemporânea e que nutre de algumas referências aos filmes noir – por mais que o longa não se preze, por assim dizer, a se encaixar por completo no subgênero. Acompanhando o astro, temos Novak em um papel duplo como Madeleine e Judy Barton (uma sósia que faz parte de uma artimanha perigosa e mortal), brilhando em cada uma das cenas em que aparece, bem como Barbara Bel Geddes como Marjorie “Midge” Wood, confidente e amiga de Scottie, em uma atuação muito bem delineada.
À época de seu lançamento, o projeto recebeu críticas mistas pelo ritmo e por se configurar apenas como um “mistério de assassinato”, como apontou a Variety em uma crítica de 1958. Porém, com o passar das décadas, os especialistas reavaliaram não apenas o contexto de lançamento da obra, como os subtextos de desconstrução do constructo masculino sobre a feminilidade e até mesmo incursões de obsessão e paranoia que o time criativo projetou sobre a obra – há, inclusive, uma sucessão desconfortável de eventos em que Scottie, após presenciar o suposto suicídio de Madeleine e cruzar caminho com Judy (cuja similaridade com a falecida o deixa atordoado), praticamente a força a se transformar na mulher que idealiza antes de cair em uma percepção catastrófica.
Não é surpresa, pois, que ‘Um Corpo que Cai’ configure-se como um dos corpos de trabalho de mais aclame de Hitchcock e integre listas e mais listas de melhores filmes de todos os tempos: mesmo quase setenta anos depois de sua estreia, o longa explode em originalidade técnica, artística, performática e narrativa, sendo remodelado e emulado por inúmeros realizadores contemporâneos como forma de apreciação máxima por uma das maiores obras da sétima arte.