terça-feira, março 19, 2024

Crítica | Atypical – 1ª Temporada

Emaranhado de sons, cores e o vigor reluzente de luzes que beiram o neon, tamanho o seu brilho. A sinestesia de uma vida cercada pela apuração mais aguçada de um mundo que já é bem estrondoso naturalmente é consternadora, quase sufocante. Dimensionar a absorção do meio social por parte de um autista implica em perceber esta realidade que nos cerca por outra ótica. Implica em sair da zona de conforto. Implica em tocar em um ponto pouco debatido fora do espectro de quem convive e sofre com esta condição. Tirar das extremidades uma temática tão complexa e imersiva também implica em despir-se de alguns conceitos ao ponto da vulnerabilidade desconfortável de quem se manteve alheio às outras condições humanas que permeiam o convívio social. Essa desconstrução é o muro mais recente derrubado pela Netflix. É o incomum trazido ao centro da mesa de jantar. É a série Atypical, a nova joia preciosa da empresa.

A plataforma de streaming tem tocado em feridas abertas profundas, algumas em quase estado necrosante. Dolorosas, latentes e perturbadoras, elas normalmente são evitadas pelo meio social, que insiste em despistar alguns assuntos, pelo bem do comodismo. Confrontando certos moralismos e intelectualismos, a Netflix rompeu este ciclo vicioso ao tratar de maneira dilacerada o suicídio, o bullying escolar e a anorexia. Desta vez, o autismo entra em cena pelas mãos de Robia Rashid, nos levando a um debate franco e prazeroso sobre um questionamento que deveria ser mais dialogado sem tanto temor. Precisamos falar sobre isso e uma vez mais a empresa nos toma pela mão em direção a um universo muito mais fascinante que jamais poderíamos imaginar.

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Atypical se destaca por sua narrativa bem construída. Desmistificando alguns conceitos que desenvolvemos ao longo dos anos através de conversas de corredores, comentários incoerentes e ignorantes ou fatos aleatórios lidos superficialmente em blogs sem propriedade, a nova série traz uma leveza surpreendente, que permite o equilíbrio ideal com a seriedade do transtorno neurológico. Aqui, estamos diante de uma história pouco conhecida para aqueles que, assim como eu, viveram boa parte de suas vidas aquém ao convívio direto com autistas. Adentramos um pequeno mundo reservado, onde uma família americana de classe média é consolidada no que tange ao trato com um jovem de 18 anos que se encontra no espectro autista. Dentro dessa atmosfera, desfrutamos dos dissabores que esta condição pode propiciar. Nem tudo são flores. Mas as coisas estão bem longe de serem sombrias e tenebrosas.

Existe uma tenacidade no seio familiar onde o espectro permeia todas as atividades, posturas e estilos de vida daqueles que compreendem esse contexto. Na nova série, dimensionamos as adversidades vividas oriundas da adaptação plena que o autismo sugere aos familiares, à medida que nos deparamos com uma normalidade extravagante e cativante, de um garoto que se encontra em um grau de alto funcionamento, um dos inúmeros que abrange o leque do distúrbio. Com uma trama que intercala a densidade do transtorno com a simplicidade da extraordinária vida comum para Sam (Keir Gilchrist) – que busca encaixar este complexo mundo em sua ávida e acelerada mente –, somos apresentados a uma esfera quase caricata de personagens tão banais no nosso convívio real, mas tão peculiares na produção.

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Ao testemunharmos o mundo pela ótica do espectro do autismo, deixamos nosso pequeno universo individual “perfeito”, para desbravar uma realidade que cativa os olhos e o coração por sua sensibilidade. Ao invadirmos aquele mesmo seio familiar a pedido da Netflix, nos deparamos com Doug (Michael Rapaport), patriarca que sonhava em construir um relacionamento íntimo com seu primogênito, mas que se perdeu na complexidade do diagnóstico do transtorno. Descobrimos Elsa (Jennifer Jason Leigh), a mãe que abdicou sua carreira profissional em virtude do filho, se entregando de maneira tão absorta a ponto de entrar em um colapso existencial ao perceber que sua independência se consolida gradativamente. Encantamo-nos por Casey (Brigette Lundy-Paine), a promissora caçula que, à sua maneira, se dedica inteiramente ao irmão.

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A esfera de protagonistas é cercada também por dois coadjuvantes fundamentais que acrescentam à narrativa um ardor ainda maior. Ironicamente, somos convidados a conhecer a vida íntima da única personagem que inicialmente somos orientados a nutrir um certo distanciamento. Por seguirmos os passos de Sam, acreditamos estarmos inaptos a descobrir Julia (Amy Okuda), a simpática e carismática terapeuta que possui tudo sobre controle – só que não.

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Em contrapartida, a figura mais caricata, extravasante e um tanto flamboyant é apresentada superficialmente. Estamos afoitos por conhecer o melhor amigo Zahid (Nik Dodani), que naturalmente expõe sua vida sem precedentes. Seu contraste é ainda mais nítido, devido à sua construção conceitual tão bem apurada. Um complexo de figuras de linguagem que sobrepõe o literatismo de Sam, que desconhece referências, sarcasmos e ironias, considerando todos os aspectos que o cercam da forma mais crua, realista e clínica possível. Essa distinção dilacerada permite o surgimento de um sidekick, o alívio cômico que, ao contrário de desqualificar o drama fundamental da série, o enaltece, atuando também como um suavizador da densidade dos assuntos mais delicados nos momentos propícios. Preciso e bem trabalhado, ele é um dos pontos de suma importância que garante o equilíbrio narrativo da série.

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Com uma direção que posiciona a audiência na mente e nos ouvidos de Sam, propiciando uma experiência tão sinestésica como a vivida por crianças, jovens e adultos autistas, Atypical também faz da mixagem de som um atributo estilístico no ato de contar uma ficção que, inexoravelmente, é baseada em experiências verídicas. Didática e divertida, seus episódios são impressões reais dos extremos que também permeiam a realidade daqueles que convivem dentro do espectro do autismo, ao mostrar as variações inerentes que acompanham a vida de pessoas acometidas pelo distúrbio. Sensível, delicado e engraçado, o mais novo fruto da Netflix é a consumação máxima da importância de usar a arte como mecanismo de confrontação e incitação de debates. Rompendo com padrões existenciais que buscam engessar a convivência social e impedir o amadurecimento das relações humanas, Atypical é aquele breve hiato no tempo onde o silêncio cede espaço a uma combinação saborosa de descobertas, compreensões e muita compaixão. E não há nada de típico nisso aí.

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