sábado, abril 27, 2024

American Horror Story: Roanoke | Há 7 anos, estreava a temporada mais AMBICIOSA da antologia

O gênero terror é extenso. Isso é um fato. Desde seu surgimento literário até sua transcrição imagética para as telas de cinema e de televisão, essa vertente narrativa passou por drásticas transformações, evoluções, ascensões e decadências próprias de qualquer visão capitalista e marqueteira – podemos ver isso também com a saturação das comédias românticas na indústria hollywoodiana, por exemplo. Entretanto, essa multiplicidade de perspectivas não necessariamente premedita uma construção estereotipada, apesar de comumente ter essa associação: as releituras e readaptações ocorrem em uma constância muito maior do que se imagina.

A sexta temporada de American Horror Story’ parte dessa premissa. Afinal, é inegável que nas temporadas anteriores, as histórias criadas por Ryan Murphy e por sua equipe estavam em um processo de decadência ou estabilidade, preferindo muito mais uma arquitetura poética que eficientemente satisfatória para os fãs do gore e do terror. Mesmo com a emergência de personagens muito complexos para a franquia, como os vistos em Freakshow’ Hotel’, não se podia negar que algo estava faltando – um arrepio na espinha, um gostinho de quero mais. E é justamente aí que entra Roanoke’.

O novo ano da antologia é, sem sombra de dúvida, a mais ousada de todas por negar a estética à qual estávamos acostumados. Entretanto, diferente das iterações predecessoras, ela utiliza seu potencial máximo para entregar uma obra-prima da televisão contemporânea, adornada com tudo o que precisávamos para o ressurgimento exponencial dessa série.

FÊNIX WANNABE

Duas das vertentes mencionadas acima são extremamente conhecidas pelo público-alvo dos filmes de terror, mesmo que não pelo nome técnico: o found footage e o mockumentary. O found footage é uma estética subversiva surgida no final dos anos 1980 e que tem como principal elemento a câmera na mão, partindo de uma perspectiva observadora-cênica; em outras palavras, um dos próprios personagens segura a câmera enquanto grava as ações do filme, fornecendo uma atmosfera mais realista para a obra em si. Buscando referências primordiais, pode-se citar longas-metragens como A Bruxa de Blair’, que causou grande comoção em sua época de lançamento e tornou-se um filme atemporal, e a franquia Atividade Paranormal’, que utiliza câmeras de segurança para seguir as assombrações acerca de uma família amaldiçoada.

O mockumentary, por sua vez, conversa diretamente com o found footage, funcionando como um “primo de primeiro grau”. O nome técnico é um neologismo com as palavras inglesas “mock” (“brincar” ou “zoar”, em português) e “documentary” (“documentário”, na tradução literal); desse modo, é possível inferir que esse gênero explora as vertentes realistas de filmes documentários com toques de comédia ou drama. Normalmente, essa diversidade dupla anda lado a lado, apesar de uma não ser dependente da outra: ao longo dos anos, com o advento de novas tecnologias, o mockumentary encontrou seu espaço buscando inspiração na estética cubista e não-conformista de cineastas predecessores – como Lars von Trier com seu Dogma 95′ -, e o resultado foram obras um tanto quando duvidosas, mas memoráveis, como Quarentena’Cloverfield – Monstro’.

‘Roanoke’, como foi intitulada a sexta temporada da antologia, parte desses dois princípios e cria uma nova identidade para a franquia, unindo o melhor dos dois mundos. As estéticas de ambas vertentes estão presentes aqui, mas a predileção pela roupagem gore atinge níveis extraordinários à medida em que a narrativa é contada. Primeiro, é preciso levar em consideração todo o mistério que circundou o tema deste ano: Murphy lançou mais de trinta teasers, mas apenas um deles estaria relacionado com a trama principal; ainda não se sabe ao certo qual das viciantes iterações é a real até hoje, mas logo nos primeiros minutos do capítulo inicial, percebemos que estamos lidando com uma história “real”.

‘My Roanoke Nightmare’ é o nome do documentário dirigido por Sidney James (Cheyenne Jackson), e disserta sobre os estranhos acontecimentos da família Miller, a qual adquiriu o terreno de um velho casarão e passou a ser assombrada por espíritos sedentos por vingança e sem qualquer conexão aparente. As composições imagéticas dividem-se em duas, uma seguindo os depoimentos dos verdadeiros Miller, Shelby (Lily Rabe), Matt (André Holland) e sua irmã Lee (Adina Porter), e a outra na reinterpretação dos fatos contados, cujos protagonistas são encarnados respectivamente pelos atores Audrey Tindall (Sarah Paulson), Dominic Banks (Cuba Gooding Jr.) e Monet Tumusiime (Angela Bassett).

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Diferentemente das iterações anteriores, Roanoke’ opta pelo escatológico e pela crueza de acontecimentos. A priori, o casal parece muito feliz com sua nova aquisição, visto que estão tentando superar os obstáculos de seu casamentos que, de forma estranha e quase inexplicável, culminaram em sua fuga para o interior e os colocaram em uma batalha pela vida em um mortal jogo de gato e rato. Acontece que o casarão, pertence a uma longa linhagem inglesa, foi palco de diversos assassinatos macabros e sanguinolentos que o transformaram em um altar de reencontro póstumo durante um período conhecido como lua de sangue.

As inúmeras histórias, assim como na casa comprada pela família Harmon em Murder House’, nos são apresentadas dentro do próprio documentário, funcionando como fillers para entendimento maior de uma audiência dentro da audiência. Logo nas primeiras sequências, mergulhamos profundamente em um dos jogos mais metalinguísticos da televisão atual, que consegue superar a ambição perseguida durante as temporadas anteriores. Muitos podem não se identificar de cara com a identidade criativa repaginada da série, mas esse desejo de conhecer o novo e de se apaixonar por aquilo a que não estamos acostumados é uma das principais sensações causadas por cada um dos dez capítulos.

O subtítulo do sexto ano já premedita uma backstory tão atemporal quanto assustadora. Roanoke é a colônia inglesa perdida que se instalou no litoral da Carolina do Norte e simplesmente desapareceu após um grupo de exploradores retornar para sua terra natal em busca de suprimentos para a nova vida além-mar. Quando estes mesmos desbravadores voltaram para aquilo que chamariam de lar, não encontraram nenhum traço de existência humana: todas as cabanas estavam abandonadas, todas as trilhas apagadas e aquele lugar parecia ter sido tomado pela força inenarrável da natureza, transformando-o em um cenário desértico e inabitável. A única coisa que encontraram foi uma inscrição cravada numa árvore, cujos dizeres formavam a palavra Croatoan. Desde então, a literatura, o cinema e a televisão permitiram se engolfar em suposições sobrenaturais sobre o que teria acontecido aos colonizadores grã-bretões, mas talvez nenhuma das obras anteriores deixou-se levar pelo misticismo tanto quanto American Horror Story’.

Buscando referências na mitologia celta, o casal Miller descobre que, para sobreviverem às condições insalubres nas quais estavam, a líder do clã – conhecida como a Açougueira (Kathy Bates) – fez um pacto com uma antiga entidade pagã intitulada Scáthach (Lady Gaga) para salvar aqueles que jurou proteger, ainda que isso significasse a permanência eterna sob os desejos de uma figura tão antiga quanto o próprio tempo. Desse modo, durante três dias – período conhecido como a supracitada “lua de sangue” -, eles retornam de seu descanso eterno para espalhar o reino de vingança e ódio, exterminando aqueles que ousaram transpassar seu território sagrado.

É comum às obras do gênero de terror trazer personagens um tanto quanto estúpidos no quesito “avisos”. Shelby e Matt são alertados sobre os perigos que enfrentam, seja pela inexplicável chuva de dentes humanos que aterroriza uma tarde de verão ou por aparições fantasmagóricas de pessoas que outrora residiram naquele ambiente e tiveram fins trágicos – como uma família asiática e duas enfermeiras assassinas. Eles até encontram um compilado de fitas de vídeo gravadas por Dr. Elias (Denis O’Hare), um especialista em assuntos do além-túmulo que se esconde em um abrigo subterrâneo até encontrar sua ruína. Tais fitam continham uma análise de todos os eventos ocorridos na casa e como todos culminavam na morte imparável daqueles que a habitavam.

Entretanto, apesar das ameaças, o casal também é ajudado por arquétipos de guardiões, seja no plano terrestre, seja no espiritual. O fantasma do primeiro proprietário da mansão, Edward Philippe Mott (Evan Peters), e o médium Cricket Marlowe (Leslie Jordan), emergem como figuras imprescindíveis para compreendermos essa atmosfera de suspense e dissertam sobre o inebriante caminho que todos os mortais trilham até a passagem para a morte. Apesar da quantidade absurda de sangue e tripas espirrando nas telas, a construção dos arcos é poética e em nenhum momento se mostra saturada – ainda mais se levarmos em consideração que o foco principal não é analisar o passado de cada uma das personagens, mas sim entender a organicidade dos antigos moradores e como suas brutais mortes se estampam como um aviso de “não ultrapasse” na propriedade.

A QUEDA PARA O ALTO

Em meados do segundo episódio, começamos a nos perguntar se a estética documentária irá perdurar até o season finale. Afinal, já sabemos que a temporada terá apenas dez capítulos, três a menos que as anteriores, mas manter o crescente ritmo de terror e de pânico não é um trabalho fácil. Talvez o grande brilho subestimado de Roanoke’ seja esse: ousar até mesmo onde as premeditações clichês de narrativas semelhantes poderiam existir. My Roanoke Nightmare’ gosto acaba nos minutos finais do quinto episódio, com pontas soltas e uma sensação de que precisávamos de algo a mais.

E é aí que a genialidade de Murphy e sua equipe atacam novamente. A partir do sexto episódio, as coisas ficam ainda mais intensas com o sucesso e o alvoroço conquistados pela série documentária de Sidney, o qual anuncia em rede nacional que a produção será renovada para uma segunda temporada, intitulada Return to Roanoke: Three Days in Hell’, prometendo um reality show às escondidas e protagonizada tantos pelos atores e atrizes da reencenação, quanto por aqueles que forneceram seus desesperados depoimentos.

O capítulo é majestoso; não apenas por seu conceito totalmente reformulado ou por suas desconstruções narrativas e montagens distorcidas, mas também por trazer diversos temas muito pertinentes da sociedade contemporânea à tona. Primeiramente, é possível traçar um paralelo da influência midiática nos programas atuais apenas com alguns frames. Como percebemos, Sidney não foi movido pelo desejo de trazer alguma reconstrução às vidas despedaçadas e traumatizadas de Shelby, Matt e Lee – muito pelo contrário: o desejo pela fama e pela ambição cega sua capacidade empática e solidária, colocando-o num trem descarrilhado que perscruta os caminhos mais insossos dos bastidores cinematográficos e televisivos, utilizando uma história que não acredita ser real para trazer conforto, comodidade e diversão a um público alienado.

Outras explanações decorrem das consequências pós-documentário, em especial uma que ocorre à Agnes Mary Winstead, atriz que interpretou a Açougueira nas reinterpretações (ou seja, mais um pouco de Bates para o deleite dos olhos). Após ser nomeada e levar para casa a estatueta do Saturn Awards por sua incrível performance, seu psicológico desequilibrado e influenciável lhe causou um crescente problema de dupla personalidade, obrigando-a a encarnar a perigosa assassina pagã na vida real, levando-a inclusive a atacar transeuntes com um facão de carne de verdade. Seu desequilíbrio patológico é escancarado para todos durante uma gravação exclusiva, culminando em sua expulsão da segunda temporada por Sidney e pela equipe.

O contraste maior ocorre, sem sombra de dúvida, entre o trio que viveu os horrores da casa e o trio que os reencarnou para o documentário. Desse modo, as frágeis personalidades traumatizadas de Shelby e Lee – cuja inimizade ganha ainda mais força depois da primeira metade da temporada – se chocam com a impetuosidade e o estrelismo de Audrey e Monet, as quais deixam bem claro suas intenções em participar do reality show: ganhar ainda mais fama e firmarem-se como astros em ascensão dentro de uma indústria decadente, saturada e praticamente morta. Paulson e Bassett mais uma vez se entregam em seus papéis duplos, trazendo versatilidade e uma expressão genuína de pretensão egocêntrica que perdura até os momentos finais da temporada.

Mais uma vez, o microcosmos não se restringe apenas aos personagens que nos são apresentados desde o capítulo um. As ramificações se estendem para aparições breves, mas que contribuem para aumentar o clima de tensão e sem qualquer hesitação trazer o cru conceito do gore para as telinhas – tudo isso combinado com o melhor que há do found footage e das endossadas franquias de terror. Através desse mais novo compilado de pequenas análises sobre o fantasioso e o mortal, temos referências que, como podemos imaginar, viajam do envelhecimento de A Bruxa de Blair’, atravessando a reinvenção narrativa vista em O Exorcista’ até estacionar perfeitamente em uma homenagem aos banhos de sangue de O Massacre da Serra Elétrica’ e A Hora do Pesadelo’.

NÃO HÁ LUGAR COMO O NOSSO LAR

‘Roanoke’ marca uma retorno drástico de American Horror Story’ para suas origens, seja na convicção de sua trama principal, nos objetivos de cada personagem ou na compilação híbrida de mimésis e inclinações às atemporais obras que tanto influenciam a arte contemporânea. Apesar de alguns erros ínfimos, toda a grandiosidade que cerca a mitologia rica e ainda sim sem explicações concretas explorada por Murphy é um indicador de que o showrunner ainda tem a mão para nos fazer pular de cadeira e não dormir à noite.

Não posso negar que a conexão estabelecida entre os personagens combinada com uma ousadia plena e confiante de recriações narrativas – e com uma boa dose de esquartejamentos à boa e velha guarda do terror – foi um dos principais motivos que me fizeram acreditar mais uma vez no potencial da antologia. Não apenas buscando a poesia, a romantização do grotesco ou até mesmo a descabida mescla de personagens destoantes, AHS’ transformou-se uma homenagem para seus próprios fãs, e espera-se que isso permaneça nas temporadas que virão.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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