Transe. No dicionário da língua portuguesa: “1. imperativo do verbo transar; 2. estado de aflição, angústia; 3. da psicologia, estado afim do sono ou de alteração da consciência, marcado por reduzida sensibilidade a estímulos, perda ou alteração do conhecimento do que sucede à volta”. Em outras palavras, um estado de suspensão da realidade, motivado por um ou qualquer motivo. Assim podemos entender o novo filme brasileiro que chega essa semana ao circuito exibidor, cujo título é ‘Transe’.
Estamos em outubro de 2018. Nas urnas, disputam a presidência os então candidatos Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Enquanto o país vai ficando polarizado por conta da política, a jovem Luisa (Luisa Arraes) curte a vida em festas, onde conhece Johnny (Johnny Massaro), um rapaz inteligentíssimo. No fim da festa, Johnny vai ficando na casa de Luisa, entrando no meio da relação dela com Ravel (Ravel Andrade). Os três passam os dias em casa, tocando violão, piano e cantando, enquanto o país fervilha com as vésperas das eleições. No meio desse turbilhão, Luisa se dá conta da iminente vitória do candidato de extrema direita e começa a tentar entender os motivos, certa de que consegue virar alguns votos. Entre descobertas, liberdades e muitos sentimentos, os três jovens tentam vislumbrar qual seria o futuro depois de outubro de 2018.
A sacada de ‘Transe’ é misturar realidade, ficção e documentário, tudo num filme de uma hora e dezessete de duração. No melhor estilo experimental, há cenas em que o espectador provavelmente vai se sentir em casa com os personagens, dentro da intimidade comum desses atores-personagens, cujos limiares entre a realidade e a ficção ficam tão tênues, que chega a ser difícil separar – inclusive por os personagens levarem os nomes dos próprios atores.
Escrito por Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor, que também dirigem o longa, ‘Transe’ faz um retrato interessante da bolha neon que cobre a juventude classe-média urbana numa alienação que centra o mundo na própria geografia, nos recortes de luta em que se enxergam, mas que desconhece aquilo que se comumente chama de “povo”. Pelos olhos da protagonista Luisa, o roteiro mostra o distanciamento de realidades que coexistem no mesmo espaço, mas que uma parece não sequer saber da existência da outra. A partir do momento em que o véu dos olhos da protagonista cai, percebemos o quanto de Rio de Janeiro, de Brasil, há nesse vasto território, e o quanto a esquerda urbana classe-média desconhece como o povo se organiza por causa da ausência do Estado em seus territórios.
Para contar essa história – que tem a participação de outros atores, que também atendem pelos próprios nomes, como Bella Camero, Matheus Torreão e Ana Flávia Cavalcanti – as diretoras-roteiristas constroem uma crônica da juventude urbana de classe média com respingos machadianos. O trio Luisa-Johnny-Ravel é Capitu-Bentinho-Escobar contemporâneo, sem a casmurrice do século XIX e sim com o espírito livre, experimental, experimentando, imersos no transe. Aqui não importa traição porque o assunto é política – ali está o sentimento de traição de Luisa/Capitu. Johnny é um cara meio Mônica, de ‘Eduardo e Mônica’, que fala coisas super impressionáveis de física quântica, enquanto Ravel é puro sentimento, cantando lindamente. Em jogo um futuro de país que hoje, seis anos depois, já conhecemos.
‘Transe’ é um filme que busca furar uma bolha que, apesar dos seis anos passados, permanece ofuscando muitos olhares e pensamentos. Considerando que este ano também teremos eleições, fica a reflexão para que nunca mais o país e os municípios tenham que atravessar tempos tão sombrios quanto os que passamos.