domingo, abril 28, 2024

Crítica | ‘Wendell & Wild’ tem o coração puro, mas peca na condução narrativa

Henry Selick pode não ter uma carreira extremamente prolífica no cenário do entretenimento, mas, com certeza, merece nossa atenção. Selick fez sua estreia com a clássica animação musical ‘O Estranho Mundo de Jack’ e, uma década e meia depois, encabeçou a icônica e arrepiante ‘Coraline e o Mundo Secreto’ – ambos os títulos considerados alguns dos melhores do gênero em questão. Sua visão única o transformou em um dos realizadores mais interessantes da contemporaneidade e, depois de um longo hiato, ele retorna em uma aguardada colaboração com a Netflix intitulada ‘Wendell & Wild’.

O longa-metragem acompanha Kay (Lyric Ross), uma jovem garota que vive na pequena cidade de Rust Bank que perde os pais em um trágico acidente. Mergulhando em uma espiral de raiva e melancolia, culpando-se pela morte deles, ela toma decisões erradas, é encarcerada em uma prisão juvenil e acredita que sua vida será apenas uma sucessão de infortúnios – isso é, até o destino a levar de volta para sua abandonada cidade natal e direto para uma escola católica onde poderá se reabilitar e retornar à sociedade. Entretanto, isso não é tudo: Kay também é parte de uma complicada trama que envolve dois demônios cujo maior desejo é escapar de sua punição no submundo e abrirem um parque de diversões, Wendell (Keegan-Michael Key) e Wild (Jordan Peele) – e que veem na garota uma oportunidade de irem para o Mundo dos Vivos e conseguirem tudo o que sempre sonharam.

Considerando que essa é uma história de Selick, o teor sobrenatural é mais do que bem-vindo – e isso não é tudo: o roteiro também traz a presença de Peele, um dos realizadores mais elogiados da atualidade, responsável por títulos como ‘Corra!’, ‘Nós’ e ‘Não! Não Olhe!’. O problema, todavia, é que o escopo da produção não é grande o suficiente para comportar tamanho talento, esbarrando em diversos convencionalismos e deslizes que se espalham pela narrativa como máculas constantes. O resultado é uma conturbada jornada que tenta dizer mais do que consegue – e que se respalda demais em um visual irretocável para mascarar os obstáculos encontrados.

Selick sempre teve um olhar certeiro para o stop-motion, arquitetando mundos incríveis e de tirar o fôlego ao lado de mãos habilidosas. Aqui, o classicismo erudito de ‘O Estranho Mundo’ e a fantasia sombria de ‘Coraline’ se amalgama e se desconstrói em uma mistura de terror e comédia que ganha força constante por uma hora e quarenta de exibição. O próprio design dos personagens parece referenciar a arte asiática do origami, com dobraduras propositalmente exageradas para diferenciá-los – e o uso das cores é divino e impecável, como era de se esperar: temos um conflito de tons complementares que urge em cada fio de cabelo desenhado, contrastando a vida com a morte, a apatia com a ação (não é surpresa, pois, que Rust Bank é pintada em um triste tom de cinza, branco e preto, desprovida das vibrantes luzes que outrora lhe davam ânimo).

A temática explorada é o luto – algo que é encarnado muito bem pela protagonista e guiada pelo restante dos personagens. Afinal, Wendell e Wild funcionam como os demônios pessoais de Kay, prometendo trazer os pais dela de volta dos mortos caso sejam invocados para o Mundo dos Vivos; todavia, eles mesmos se tornam peças em um jogo muito mais perigoso e alicerçado pela presença de Lane (David Harewood) e Imgard Klaxon (Maxine Peake), dois burgueses que querem destruir a cidade e transformá-la em uma grande prisão privada apenas para lucrarem. De fato, há tentativas consideráveis de condenação do capitalismo predatório promovidas por Selick e Peele – mas as coisas são superficiais demais para nos levarem a pensar além do óbvio e além do que é servido.

A animação ganha pontos ao trazer uma representatividade significativa às telonas, tratando os espectros de gênero e raça com fluidez aplaudível e necessária para os dias de hoje – ora, temos Angela Bassett interpretando a Irmã Helley, que ajuda Kay a lidar com os demônios e com o poder premonitório que ela ainda não sabe controlar; de outro lado, Sam Zelaya encarna Raúl Cocolotl, um menino trans apaixonado por arte que se torna confidente de Kay. Mais uma vez, a produção esbarra em clichês e não consegue decidir em qual caminho seguir, fundindo diversas tramas em uma transbordante e cansativa aventura que, infelizmente, se rende à previsibilidade. Temos inclusive uma incursão à la deus ex machina que quebra a suposta mitologia inventada pelos criadores.

Não deixe de assistir:

É sempre bom ver Selick de volta ao cenário mainstream – mas ‘Wendell & Wild’, por mais puro que seja de coração, não faz jus ao que o cineasta já nos deu em um passado não muito distante. Para as crianças, a animação deve agradar pelas inflexões imagéticas. Mas não espere nada fora da curva ou embebido em originalidade (e, se você acredita encontrar isso no filme, garanto que irá se decepcionar).

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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