“A sabedoria de viver é você não estacionar”.
No último dia 02 de fevereiro, o Brasil parou com o triste anúncio de que a icônica e lendária apresentadora e repórter Glória Maria havia falecido. Maria havia sido diagnosticada em 2019 com um tumor cerebral, que foi tratado com sucesso através da imunoterapia, mas também sofreu com metástases cerebrais pouco tempo depois. Eventualmente, o tratamento parou de surtir efeito e, infelizmente, Glória nos deixou com apenas 73 anos. Mas o seu legado ficará marcado no cenário nacional para sempre.
Nascida em 1949, no Rio de Janeiro, Maria era filha de Cosme Braga da Silva, alfaiate, e de Edna Alves Matta, dona de casa. Ela passou a infância e a adolescência estudando em escolas públicas, destacando-se principalmente na área de redação, na qual sempre vencia diversos concursos e prêmios, além de ter estudado inglês, francês e latim. Aos 18 anos, ingressou em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica, também no Rio; a partir dos anos 1970, começaria a trabalhar na Rede Globo, como radioescuta, dando início a uma das carreiras mais célebres não apenas da emissora, mas da história da televisão brasileira.
Em seu exemplar trabalho como repórter, Glória quebrou diversas barreiras de gênero e de raça ao se consagrar como a primeira mulher negra não apenas a entrar ao vivo no Jornal Nacional, mas a primeira a cobrir uma guerra – e tudo isso em meio a constantes ataques racistas e sexistas que sofria desde que se tornou uma personalidade pública. Em 1982, Maria ficou responsável por fazer a cobertura da Guerra das Malvinas, no Atlântico Sul; conforme ela lembra em uma recente entrevista ao programa Roda Viva, a cobertura foi “um desafio para mim. Eu quis ir. Eu pedi para o meu diretor, na época […]. Porque só iam homens, o tempo inteiro, desde que a guerra [tinha começado]. Eu estava muito dividida: queria ir, mas estava com medo. E foi algo que eu tenho exercitado ao longo da minha vida que é assim: ‘o medo não pode me paralisar’”.
Com visitas a mais de cem países, Glória ganhou ainda mais destaque ao começar a apresentar o programa Fantástico, entre os anos de 1998 e 2007. Suas reportagens, perpassando a Europa, o Oriente Médio e a África, se tornaram sensações da televisão, batendo recordes de audiência e imortalizando seu legado e sua competência no cenário televisivo. A partir de 2010, ela passou a integrar o Globo Repórter, através do qual viajou para Myanmar, Camboja, Laos, Vietnã e tantos outros lugares, explorando culturas muito diferentes da nossa e auxiliando a compreender a alteridade do planeta.
E isso não é tudo: a repórter também sempre se envolveu com projetos, pessoais ou profissionais, que refletiam sua importância como pessoa política dentro de um escopo complexo e marcado por períodos turbulentos. Também conversando com o Roda Viva, Maria se recorda do momento em que entrevistou os generais no período da Ditadura Militar: “eu tinha que saber como me movimentar dentro daquilo”, ela conta. “Do Mão Branca ao General Figueiredo, […] eu tinha que me virar nos trinta”.
João Baptista Figueiredo, o último dos militares a comandar o Regime, inclusive disse que não queria mais ser entrevistado pela “neguinha da Globo”:
“Eu tive uma experiência horrível com o General Figueiredo, mas eu sempre cobria o Ministério da Guerra, na época da ditadura. Era o final do governo Médici e continuei lá. Eu não sabia que não podia ser daquele jeito dentro de uma ditadura militar”, ela continua. “Eu perguntava o que eu queria e eles me olhavam e se perguntavam: ‘de onde saiu essa maluca?’. Esse episódio do Figueiredo foi horroroso. Mas eu não tinha essa preocupação de ele me mandar prender ou fazer algo comigo, porque se ele fizer alguma coisa, eu mando ele para outra coisa”.
Em 2007, Glória faria história novamente: ao ficar responsável por uma matéria no Fantástico sobre a festa do pequi, fruta adorada no Alto Xingu pelos indígenas Kamaiurás, ela inaugurou a era da alta definição na TV – dividindo os holofotes com o repórter cinematográfico Lúcio Rodrigues. A partir daí, não havia nada, nem ninguém, que pudesse impedi-la de quebrar mais barreiras e ser eternizada por diversos jornalistas mais novos e por colegas de trabalho como uma das personalidades mais importantes de todos os tempos.
“Eu sou uma pessoa movida pela curiosidade e pelo susto. Se eu parar para pensar racionalmente, não faço nada. Tenho que perder a racionalidade para ir, deixar a curiosidade e o medo me levarem, que aí eu faço qualquer coisa”.
Além das reportagens políticas e sociais, Maria não deixou de deixar marcas na cultura pop – e entrevistou, em sua expressiva carreira, nomes como Michael Jackson (que inclusive lhe deu um beijo na bochecha), Madonna, Mick Jagger, Nicole Kidman e Freddie Mercury, este último sendo entrevistado no Rock in Rio de 1985.
Talvez o maior aspecto que possam levar do legado deixado por Glória Maria, afora sua ética e sua capacidade de envolver até os espectadores mais céticos, é a necessidade de perder o medo e se jogar de cabeça. Afinal, se há algo de certo no mundo, é que devemos ter a “necessidade de viver e experimentar”.