quarta-feira, maio 1, 2024

Crítica | Surrealismo e elegância se fundem na intrigante antologia animada ‘The House’, da Netflix

Na mais nova antologia animada da Netflix, ‘The House’, um time de talentosos realizadores nos convida para conhecer os bizarros corredores e cômodos de um gigantesco casarão. Estendendo-se ao longo de três episódios, compilados em um longa-metragem de pouco mais de uma hora e meia, a produção, assinada por Enda Walsh, é definitivamente uma das mais estranhas de 2022 (no melhor sentido do termo) e um ótimo jeito de começar esse ano – reunindo acontecimentos arrepiantes e com reviravoltas chocantes para discorrer sobre temas de importância altíssima para os dias de hoje.

A verdade é que boa parte das investidas da gigante do streaming costumam falhar em cumprir com o que desejam – como visto na última dezena de obras de ação que pulularam em seu catálogo nos últimos meses. Em meio à luta constante em se manter firme frente ao crescente número de outras plataformas virtuais (principalmente a HBO Max e o Disney+), era apenas de se esperar que a constante renovação de seus títulos trilhasse um caminho um tanto quanto conturbado. Entretanto, precisamos comentar que, quando a Netflix e seu extenso time de colaboradores se sentam para pensar em como chocar os espectadores e os assinantes, normalmente somos agraciados com uma investida mágica, instigante e que nos leva a pensar sobre questões existenciais – como o recente ‘A Filha Perdida’, que promove análises sobre feminismo e maternidade.

Cada um dos três contos explora um lado da psique humana que é traduzido através de uma belíssima estrutura stop-motion: o primeiro deles acompanha a saga de uma família que, sofrendo duras críticas de parentes mais abastados, vê uma oportunidade de “subir na vida” ao ganhar um presente de um empreiteiro misterioso. Abandonando o cotidiano simplório que tinham, eles se mudam para o casarão titular e percebem que nem tudo é o que parece ser; entre refeições exuberantes e objetos de grande valia, a família não percebe que está, literalmente, se tornando parte da mobília, deixando para trás valores que sempre defenderam em prol de uma ambição desmedida – e uma realização tardia de que, às vezes, o luxo é uma faca de dois gumes. É nesse âmbito que a jovem Mabel (Mia Goth) e a irmã mais nova, Isobel, tentam recuperar um pouco da inocência para sobreviverem e conseguirem fugir dessa prisão sem grades.

A pretensão e o desejo são os temas que se repetem nas histórias da antologia, pinceladas com pulsões psicológicas e intimistas que refletem a atmosfera teatral dos enredos. A construção dramática de “And heard within, a lie is spun”, que abre a jornada, é apenas o princípio de uma afeição pelo surrealismo cinematográfico que remonta a clássicos do terror e do suspense, nunca, de fato, chegando à essência do medo, mas fomentando uma agridoce sensação de que confiar nas pessoas erradas pode ser um trajeto sem volta. E o que mais funciona é a brevidade das inflexões, que se desenrolam por pouco mais de meia hora.

Em “Then lost is truth that can’t be won”, evocativo título do segundo episódio, cabe à diretora Niki Lindroth von Bahr pegar elementos do cinema dos anos 1920 e 1930 para viajar no tempo e explorar uma trama aparentemente comum – que envolve um designer de interiores e arquiteto (dublado por Jarvis Cocker) que quer terminar a reforma da casa para vendê-la a algum cliente. A personalidade centrada do protagonista é mascarada por uma carência excessiva e uma necessidade de se provar, inclusive quando enfrenta contas atrasadas e ameaças de despejo. Assim como o conto anterior, as coisas desandam de forma brusca e são catalisadas com a chegada de um estranho casal (vividos por Yvonne Lombard e Sven Wollter) que se apropria da mansão e não quer mais sair de lá

Aqui, a ambição reencontra sua voz, mas reformulada com uma acepção de que, “se não pode vencer seus inimigos, junte-se a eles”. O personagem interpretado por Cocker é um rato civilizado que vive em uma sociedade que não o fornece qualquer tipo de amparo emocional; quando a normalidade a que está acostumado se desmantela à sua frente, ele se junta aos “inquilinos” que se apoderam do casarão e faz um retorno à involução, à barbaridade do mero parasitismo: ele passa a existir para satisfazer às demandas mais básicas de qualquer criatura, compreendendo que não pode fugir de seus instintos mais primitivos.

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Por fim, “Listen again and seek the sun” é um ótimo desfecho por ir de encontro à ambientação pessimista-realista dos episódios anteriores. Aqui, acompanhamos a intransigente e frustrante jornada de Rosa (Susan Wokoma), uma gata que deseja terminar a reforma dos sonhos na casa, mesmo em meio a uma trágica inundação que a deixou presa lá dentro com dois outros hóspedes. Rosa representa a complexa faceta humana de não conseguir se livrar de bens materiais que não têm mais o que oferecer e que se tornaram obsoletos, demonstrando ser uma personagem extremamente apegada ao passado e cega para o que o futuro a aguarda. Não é até os momentos finais, em que ela se vê sozinha no meio do nada, que ela enfrenta o medo de sair da zona de conforto e navegar no desconhecido, recuperando o prazer da vida.

De certa maneira, a antologia não é livre de cometer alguns deslizes, como se deixar levar pelo excesso de simbolismos e por metáforas de difícil compreensão pelo público geral. Todavia, isso não é o suficiente para apagar a originalidade e a vivacidade com que a animação é construída – e a importância temática de que se vale para causar algum tipo de sensação nos espectadores.

A sensorialidade é um fator decisivo para que o longa cumpra com o que pretende – e, no momento em que percebemos o “verdadeiro potencial da casa” e como ela se ergue como a verdadeira protagonista dessa intrigante peripécia, a produção nos leva a lugares inimagináveis (e que não podem ser ocultados).

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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