Mãe, escritora, editora, médica. Antes de Gilead ser o que se tornou, a América era um país repleto por figuras femininas diversas, assim como uma série de países onde a escolha é realmente uma opção de vida. Mas com uma nova ordem em vigor, novos princípios nascem, sendo uns angustiantes, outros ainda mais sufocantes. Na narrativa de The Handmaid’s Tale, o papel da mulher é completamente anulado ao ser reduzido a uma doentia escravização sexual mascarada de impulso à natalidade. E em meio a discussões profundas sobre um doloroso histórico real de rejeição feminina, entremeado a uma regressão emblemática atual no seio da trama, a série traz um elemento até então novo: a necessidade latente em toda e qualquer mulher de se posicionar.
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Não se trata de mostrar a que veio ou provar o seu valor para o mundo. Mas em um universo onde a mulher é reduzida aos seus atributos físicos e ao tipo de coisas que ela pode ofertar em virtude disso, se posicionar é tão natural quanto respirar. É inerente, é necessário. E no episódio ‘Women’s Work’, um leque diverso de mulheres se apresenta diante da audiência, mostrando aquelas rachaduras substanciais existentes no sistema ditatorial de Gilead. E embora suas vozes tenham sido submetidas a meros ‘sim’ e ‘não’ e seus rostos estejam prostrados em direção ao chão, elas ainda podem ser ouvidas e vistas. Porque assim como é natural para ela se posicionar, se destacar vem a galope – quer goste ou não.
Um dos aspectos mais cativantes do oitavo capítulo da produção de Bruce Miller é justamente o fato de ele evidenciar a necessidade de se caminhar adiante na trama. A aceitação do efeito anestésico de se anular pode perdurar até certo tempo, mas não se perpetua jamais. A natureza avassaladora de quem quer decidir se manifesta assim como manifesta sua revolta. Em ‘Women’s Work’, a fagulha nascida no coração de Serena (Yvonne Strahovski) cresce, exatamente como uma pequena rachadura que quase passou despercebida, até que atingiu proporções magnânimas. O peso de suas escolhas e de seu conceito desvirtualizado de sobrevivência nacional começam a recair sob os seus ombros, pesando e ardendo como as chibatadas de um chicote – ou cinto de fivela. A maldição que proferiu com seus lábios passa a derramar sobre si, gerando na personagem um conflito torturante, mas ironicamente revigorante.
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E dentro desse cenário, onde os questionamentos que a audiência nutriu durante toda a primeira temporada, começam a ganhar vida dentro da tela, June emerge como uma doce, delicada e potente voz compassiva. Contrariando todos os traumas óbvios de seu contexto, ela demonstra o grau de misericórdia que só Cristo teve. Abdicando-se de sua própria dor e sucessivas perdas, ela é o sopro de compaixão que queríamos nutrir pelo outro, mostrando uma camada de vulnerabilidade, cuidado e bravura ainda mais profunda. E em um roteiro que especificamente se desabrocha em cinco pequenas narrativas femininas, dimensionamos o valor e força que a mulher tem nos contextos onde foi inserida. Ainda que em meio a tragédias, ela se sobressai, seja pelo amor transcendental de quem carregou um filho no ventre, seja por sua dedicação profissional.
A cada novo episódio, The Handmaid’s Tale se destrincha de maneiras surpreendentes, indo muito mais além dos círculos viciosos de agressão e opressão de Gilead, nos permitindo quase nos transformar em espectadores oniscientes. Irradiando uma expressividade intrínseca à atrizes completamente entregues a suas respectivas personagens, cercadas por uma estética em tons de cinza que brilha com os feixes de luz natural que ainda insistem em penetrar ambientes pouco arejados, a produção da Hulu segue nos levando a uma viagem hipnotizante, desmembrando seus protagonistas com densidade e substancialismo.