quinta-feira, março 28, 2024

Crítica | Florence + the Machine mergulha em terreno mítico com o impecável ‘Dance Fever’

Depois de quatro longos anos esperando seu retorno, Florence Welch nos agraciou com o lançamento de seu quinto álbum de estúdio. E, após uma extensa preparação promocional, que incluiu a divulgação de diversos videoclipes impecáveis e uma estética similar a obras anteriores, mas ao mesmo tempo diferente do que ela já havia nos entregado, os fãs finalmente puderam se deliciar com um compilado de catorze faixas inéditas que se consagra como uma das melhores rendições da cantora e compositora britânica.

Welch começou sua carreira em 2009, fazendo seu début com o adorado ‘Lungs’ e, desde então, trilhou um caminho de extremo sucesso, dando vida a algumas pérolas do cenário cenográfico como a dançante “Dog Days Are Over”, a explosiva “Spectrum” e a singela colaboração “Hey Girl”, performada ao lado da lendária Lady Gaga. Mais do que nunca, a performer parece ter total controle de sua identidade artística e, tomando controle absoluto do que deseja fazer, construiu uma narrativa atemporal, confessional e que reiterou sua invejável versatilidade no mundo da música – arquitetando uma jornada sinestésica que exala afeição desde o baroque pop até o indie rock. O esplêndido resultado permite que Welch retorne aos holofotes com força descomunal e põe o álbum como um dos grandes discos de 2022.

Analisar um álbum de Florence, ou, como conhecemos seu ato musical ao lado de Isabella Summers, Florence + the Machine, nunca é um trabalho fácil, pelo fato das músicas não se encaixarem essencialmente em um gênero bem demarcado. Sua última incursão, ‘High as Hope’, fincou os pés em um coming-of-age sinestésico pincelado por diversos estilos sonoros – e, agora, atingindo uma maturidade surpreendente, retornamos com uma agressiva e aplaudível mixórdia estilística que já se inicia com a potente “King”, um dos singles oficiais do álbum. Enquanto a pessoalidade inalienável das produções anteriores abria espaço para reflexões íntimas e individuais, a canção em questão ergue-se em um empoderamento antêmico e discorre, ao longo de quase cinco minutos, sobre um dos principais que as mulheres continuam enfrentando: o sacrifício de sonhos em prol do forçoso papel lhes dado desde o nascimento.

A faixa é guiada pela profundidade retumbante de um baixo e de uma bateria que percorre uma trajetória bem funcional, exumando-se em um crescendo orquestral que é resumido pela máxima “eu não sou mãe, eu não sou noiva, eu sou Rei” (utilizando, de fato, o pronome de tratamento no masculino como prenúncio da inversão de papéis). Como se não bastasse, Welch também oferece belíssimos e sólidos vocais que transformam a track em uma das melhores de sua carreira – ainda mais pelas críticas que emprega nos versos.

O interessante é a maneira como esta e as outras músicas, não obstante que nutram de uma linha bem lógica com os discos anteriores de Florence, partem de uma premissa diferente, em que ela comanda a progressão sonora e o arranjo instrumental, e não o contrário. E isso não seria possível sem a colaboração com Jack Antonoff, que empresta suas conhecidas habilidades tanto à composição quanto à produção. Antonoff, que nos últimos anos comandou os impecáveis ‘folklore’, ‘Gaslighter’ e ‘Norman Fucking Rockwell!’, por exemplo, demonstra estar muito à vontade com a visão singular de Welch, recusando-se a ter medo de explorar e comprando o que lhe é ofertado. “Free”, uma ótima entrada do disco, nos arremessa de volta para o indie rock dos anos 2010 e é alcança um status de excelência pela perspicácia de uma brandura apaixonante e nostálgica; as similaridades acontecem em várias tracks, como a fabulesca “Choreomania” (que inspirou toda a estrutura estética do álbum) e a sublime “Girls Against God” (servindo como um hino de empatia e de força que atinge um certo teor evangelizador).

Antonoff não é o único a causar uma boa impressão e divide a produção com Dave Bailey, vocalista da banda Glass Animals. Ambos colaboram ao lado dos magníficos escritos poéticos de Welch na narcótica atmosfera de “Dream Girl Evil”. A narrativa, sarcástica e ácida de maneira urgente, revela a disparidade de gênero em que, quando uma mulher se posa como independente, atrai olhares de desprezo pelos homens: trazendo elementos da icônica canção “Freedom!”, de George Michael, Florence abusa de uma retórica com propósito condescendente para com seu interlocutor, perguntando a ele se “eu o desapontei? A mamãe deixou você triste? Eu te faço lembrar de todas as garotas que te deixaram louco?”. “Cassandra” parte de um enredo similar, promove-se um retorno poético à mitologia grega, associando a história da personagem ao fato da eu-lírico ser diminuída por ser quem é e por falar o que bem deseja (“eles cortaram a minha língua, e me deixaram lavando louça para pensar no que fiz”); “The Bomb”, mergulhando em uma declamação intimista, é uma carta de ajuda que Welch escreve para si própria – mostrando que a música é o mecanismo que a ajuda a lidar com a ansiedade e a depressão que enfrenta desde sempre.

Apesar das mudanças nas cândidas histórias que traz à tona, é notável como a sistematização temática é recorrente neste álbum – o que temos é uma diferenciação na forma de contá-las e na maneira como elas chegarão aos ouvintes. “Daffodil” é uma mítica peregrinação de autorreflexão, lidando com uma expressividade que se transpõe ao literário e borra a separação entre os tipos de arte (considerando que o alcance sensorial da obra é múltiplo e avança até mesmo para o industrial psicodélico); em contraposição gritante, a música é seguida pela envolvente e saudosista “My Love”, uma amálgama entre dance-pop, disco e orquestral que arranca o melhor da performer e deve fazer parte das playlists de seus fãs.

Não deixe de assistir:

‘Dance Fever’ não apenas marca o retorno de uma gloriosa artista ao cenário fonográfico, como serve como encerramento e início de um doloroso capítulo da sua vida – que a obrigou a rearranjar sua visão de mundo e a reencontrar-se dentro de suas paixões.

Nota por faixa:

1. King – 5/5
2. Free – 5/5
3. Choreomania – 5/5
4. Back in Town – 4,5/5
5. Girls Against God – 5/5
6. Dream Girl Evil – 5/5
7. Prayer Factory – 5/5 
8. Cassandra – 5/5
9. Heaven Is Here – 4,5/5
10. Daffodil – 5/5
11. My Love – 5/5
12. Restraint – 5/5
13. The Bomb – 4,5/5
14. Morning Elvis – 4,5/5

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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